João/Stefano #10

Copenhague, 01/10/2013

Querido Stefano,

Sua última carta chegou carregada não só da melancolia regular do exílio, mas também de uma certa urgência, um clamor por socorro. Por isso, achei adequado te mandar alguns recados por outros meios antes de responder por aqui (porque estas respostas requerem uma certa elaboração e um certo tempo). Fizemos bem em nos comunicar dessa forma, porque eu também estou cheio das mesmas perguntas. Conversando assim, acabamos por descobrir algumas coisas juntos, que vou tentar recapitular e desenvolver um pouco aqui.

A verdade é que eu gostaria muito de te dar as respostas certas a esses dilemas. Mas eu não as tenho para mim mesmo. O que posso te oferecer são algumas perguntas. Nós sabemos o que as perguntas fazem conosco. Posso me ver, e te ver, passando a odiá-las, a desejar que elas não existissem. Mas elas estão aí e nós não podemos fazer muita coisa se la vie est absurde.

O que segue é a minha tentativa de ordená-las aqui numa sequência compreensível.

– A nossa entrada na faculdade do Brasil poderia também ser vista como um momento de abandono, de falência social. O que fez com que ela fosse o contrário disso? O que os amigos daqui têm de diferente (pior?) do que aqueles que nos eram desconhecidos quase quatro anos atrás?

– O que, de tudo aquilo que me impede de me sentir em casa aqui, é contornável?

– A (nossa) espiritualidade brota de algum lugar em específico ou ela simplesmente existe, independentemente da nossa vontade, reconhecimento ou consciência?

– Quando eu me (des)encanto com alguma coisa, quem ou o que despertou esse (des)encanto?

– (Essa partiu de você) será que algum dia resolveremos essas coisas?

Talvez eu tenha uma facilidade para lidar com a desesperadora inquietação que essas questões nos provocam porque eu sempre fui um ser falido socialmente. Durante os primeiros vinte anos da minha vida, eu não quis fazer nada a respeito da angústia de tentar conciliar meu bom senso e minhas incertezas imateriais com um ambiente evangélico bastante peculiar e crescentemente fundamentalista. Quando a conciliação me pareceu impossível e indigna, eu resolvi abandonar a minha igreja. Passados alguns meses, eu e meus amigos de infância percebemos, silenciosamente, que vai ser quase impossível evitar nossa alienação e estranhamento mútuos.

Minha despedida poderia ser a minha carta de condenação à solitária.

Queria te contar um pouco sobre uma das figuras que hoje mais me inspiram. Meu pai cresceu num ambiente incomparavelmente mais opressivo que o meu: e ainda pior, com escassos recursos materiais. Mas ele tinha um sonho e uma boa professora de primário. Contra o sistema de educação, contra muito bullying e contra as dificuldades e a competição que alguém que vem de uma família pobre do interior sempre tem que enfrentar, meu pai conseguiu ser forte e ir bastante longe na carreira com que sonhava.

E então, por causa de um problema no coração, ele teve que desistir de tudo.

Eu nunca entendi, mas sempre admirei, o fato de meu pai ter passado pelo menos os cinco anos seguintes sem algo estável em que se agarrar. E ainda assim ter conseguido recolher os cacos, recomeçar e dar uma existência digna a mim e aos meus irmãos.

Isso é um pouco da história do meu pai. Não posso esquecer da minha mãe, que nasceu numa família muito grande, e também com poucos recursos, e perdeu o pai com cinco anos. Às vezes, junto com as muitas irmãs, ela lembra do tempo em que tinham que pular refeições para conseguir levar algum dinheiro para casa.

Esta é uma carta bastante íntima e estou com medo de não fazer justiça às histórias e às pessoas sobre as quais estou falando. Eu morei mais de vinte anos com o meu pai e e com a minha mãe me acostumei com a presença deles sob o mesmo teto. Foi só quando vim pra cá e fiquei diante da minha própria sub-vida, da minha incapacidade de viver, que fui reler mentalmente as histórias que escrevi acima. Sob uma certa luz, podem parecer histórias tediosas. Mas a verdade é que eu sempre vivi na mesma casa que as duas pessoas mais incríveis do mundo.

Ou melhor, quatro.

Eu vi meu irmãozinho crescer diante dos meus olhos. Quando as coisas acontecem assim, temos um curso extensivo de como enxergar a preciosidade daquela vida e daquela pessoa. Nós nunca perdemos a oportunidade de dizer um ao outro que nos amamos; mas nem precisaríamos, porque já está no olhar. Eu sempre achei que minha relação com minha irmã mais velha era diferente, mais complicada, mais cheia de atritos e de pontos cegos.

Foi na tarde em que visitei os sítios arqueológicos que percebi que não era bem assim. Na volta a Copenhague, de súbito e aparentemente sem motivo algum, encontrei-me chorando de saudade da minha irmã. Só da minha irmã. E não só do tempo em que brincávamos nas nossas casinhas pequenas em Itu e Mogi-Guaçu, infinitas e belas como palácios reais, mas também de quando tínhamos que dividir o carro um mês atrás e de tudo que aconteceu no meio. Foi forte, verdadeiro e inesperado, e eu tive que esconder o rosto porque não conseguiria explicar o que estava acontecendo a quem perguntasse.

Tudo isso poderia transformar meus dias em melancolia e saudade, mas não tem sido assim. Copenhague sempre vai ter um lugar especial no meu coração, pois foi o lugar em que eu percebi que as minhas ideias anteriores sobre onde o valor do mundo reside sempre tinham sido estimativas pessimistas. Aqui, sozinho na companhia da minha própria mediocridade, vi que por toda a minha vida talvez não tenha sido metade do ser humano que cada um dos meus familiares é; mas que esse cenário não vai melhorar se eu não ajudar a mim mesmo.

Agora que já fui tão longe, não sei por que não dizer tudo. Eu acho que essa é a maior conquista que alcancei no último mês, quiçá em toda a viagem: aprender a enxergar a vida e a história nos olhos de cada um. Eu ainda estou esperando a resposta da minha permissão de residência, e passo os dias assombrado pela possibilidade um carimbo de rejeição na caixa de correio. Mas nem mesmo esse acontecimento eu poderia chamar de fracasso. Porque agora, diferentemente do joão de julho, este que vos fala não acredita mais em usar os reveses para justificar apatia e desânimo, mas sim em juntar os cacos e seguir adiante.

É irônico que a primeira carta meio auto-ajuda do blog parta de mim, o dono da vida mais patética dentre nós três. Eu poderia tentar fazer uma versão oposta da sua lista de contrastes: aqui eu saio no fim de semana, aqui eu olho nos olhos das pessoas quando converso com elas, e ouço de verdade suas histórias, mas acho que a lista pararia aí. Porque se você vier me visitar, acho que você vai ter a impressão de que encontrou o mesmo João Guilherme de antes, só um pouco mais resistente ao frio.

Eu também, como sempre, não sei fazer piada, me sinto meio estranho no meio do grupo e falo coisas óbvias e sem graça. Mas eu tive paciência, alguns outros tiveram paciência, e eu acabei fazendo amigos. E no final das contas, existia sim algo que valia a pena em mim, nas pessoas e na cidade. Eu não tenho nada a ensinar a alguém como você. Só acho, e aposto às cegas, que ainda tem muita coisa passando na frente dos seus olhos em Paris que você não está se permitindo, ou arriscando, enxergar. Talvez o problema não seja ir de um lugar pro outro ou fazer ou dizer a coisa certa mas sim acertar o foco.

Sinceramente como quase nunca antes,

João G.

P.S.: Gostei muito do cartão postal, você bem sabe. Já pensou bem no que me disse?

Em resposta a: Stefano/João #9

Thomaz/Stefano #8

Caro Stefano,

Sua carta também foi, para mim, um lugar onde chegar. Acho que textos também pertencem ao mundo do espaço, não só na página como, sobretudo, na memória. Neles se experimenta a mesma sensação de solidão que você descreveu. Nem sempre, nos livros como na vida, podemos alcançar essa sensação de pertencimento ao local e ao instante. Mas se, como você descreveu, essa experiência lança raízes implacáveis, ainda assim acredito no caráter benéfico dessa força.

É preciso viver o onde, ainda que muitas vezes isso seja impossível. Essa nossa conversa me lembrou de nossas primeiras cartas, em que eu falava sobre Cem Anos de Solidão e sobre a chuva em Macondo. Estamos sempre voltando aos mesmos lugares.

Espero notícias detalhadas suas para breve! Conte-me sobre como anda sua vie parisienne – o trabalho, as aulas, o cotidiano.

Um abraço,

Thomaz

Em resposta a: Stefano/Thomaz #7

João/Stefano #8

Caro Stefano,

Eu vejo um gesto que sugere um sentido. A polissemia é intencional. A mão poderia estar apontando para o Norte, aonde nós viemos, ou até para mim, embora ela esteja um pouco deslocada da minha direção. Não importa. Quando as pessoas olham para mim, eu tenho a impressão de que elas estão olhando um pouco na direção errada mesmo. Eu não posso ver para onde ela aponta, mas posso imaginar um caminho que segue nesse sentido e um sentido para esse caminho.

Não sei quanto a você, mas eu não sei exatamente onde estou e não sei qual é o sentido da minha jornada. Thomaz diz que quando eu voltar saberei porque saí. E isso é o que eu também vejo na sua foto: a criação. Em vez de simplesmente seguir na direção sugerida, fugindo do gesto que a indica, podemos estender nossa própria mão até ele e reencenar o violento e chocante momento da nossa criação. Pois esse é o desafio de nossa expedição: não ser apenas turista num país simpático e sempre sorridente mas encerrar-se na forja e recriar-se de fato.

É por isso que não acredito que o impulso expedicionário seja sempre egoísta. Ele é mais como uma pulsão de morte, uma tentativa de extrair de nós mesmos uma energia que permaneceria potencial se alguma coisa não fosse destruída. Não que nós saibamos exatamente o que fazer com ela, embora tenhamos esperança de que ela vá além de nós mesmos. Mas tem vezes que estocá-la com cautela simplesmente não é suficiente. Nesses momentos, só existe a mão, a mão que aponta um sentido desconhecido, ou que aponta para um joão um pouco deslocado daqui. É só uma sugestão e nenhuma garantia, mas isso não importa.

O que importa é ir.

Com carinho,

João G.

P.S.: Não se preocupe com o tempo de resposta. Eu só queria garantir que você visse a carta.

Em resposta a: Stefano/João #7

Thomaz/Stefano #6

Tefo,

Confesso que fiquei surpreso pela maneira como você entendeu minha pergunta sobre o para onde vamos. Creio que, ao lançar a questão, pensava me referir ao nosso próprio jogo de linguagem, e à maneira como seria possível que ele continuasse, após nosso alegre bonde (ou van filosofia, para citar Laerte Coutinho) ter sido lançado, por este intrépido condutor, contra o muro manchado de um aparente beco sem saída. Por favor, não tome essa descrição como uma declaração presunçosa – é somente a confissão de um estado de espírito. Há coisa que nós acreditamos saber, mas quando finalmente as sabemos (provamos seu sabor) de fato, somos alvo de uma violenta epifania. Se não fui e não sou capaz de expressar com clareza o que se passou, é devido à matéria e à impotência da minha arte (tekné).

E no entanto, se você não respondeu o que eu imaginei ter perguntado, mais uma vez a linguagem e a mente pregaram uma peça, e você respondeu o que eu não sabia que queria saber. Você respondeu a pergunta subterrânea, cuja resposta só poderia ser tão fragmentada e fértil como a sua foi.

Agora, às réplicas.

Não sei se você conhece a série de quadrinhos Sandman, do escritor britânico Neil Gaiman, mas os personagens centrais da séries são os Endless (Perpétuos, na versão brasileira), personificações de sete conceitos universais: Destiny, Death, Dream, Destruction, Desire, Despair e Delirium (que já foi Delight). Em uma das histórias contadas por Gaiman, ele usa uma imagem muito bonita do Destino, ao dizer que à frente dele há infinitos caminhos, mas por onde ele veio, um só.

Isso me faz pensar nesse conceito “óbvio” mas por isso mesmo muito interessante  de que nossa trajetória de vida nos trouxe até aqui (e é isso que nos faz únicos) e de que a partir de agora (o primeiro dia do resto da nossa vida) tudo pode acontecer.

“Interessante” para mim, no caso, significa poder virar ao contrário e ver o que acontece. E se a gente se virar nesse caminho e descobrir que por onde nós viemos há uma infinidade de veredas mas à nossa frente uma só estrada?

Então, me pareceria que essa imagem diria sobre uma certa inevitabilidade de um destino grego, que reserva a cada um sua sorte, ao mesmo tempo em que sugerisse, muito modernamente, sobre a confluência de trajetos que compõe um sujeito caminhante. Discurso, ideologia, memória, imaginação, inconsciente… O que realmente nos trouxe até aqui?

Essa imagem talvez terminasse por mostrar que o Destino de Sandman viu o caminho daquela maneira porque caminhava de costas, sem perceber. E isso inevitavelmente me lembra do Anjo da História que Walter Benjamin viu num quadro de Klee:

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”

Um visão perturbadora.

Sinto que mais uma vez desviei-me do bom passeio público que se estende ao longo da orla e terminei me enfiando por uma dessas vielas escuras às quais nunca sabemos como chegamos. Devo forçar-me a voltar para onde me perdi de você? Sim, façamos isso.

E assim me ponho a caminho para reencontrar o fio da meada que me estendias do novelo que traçávamos em conjunto. Ele me levará pelos caminhos que me apontaste?

Vejamos:

1. A Vida nunca pediu licença, não é mesmo? Por que a essa altura dela, 20 anos já adentrados, seria diferente? Tenho a impressão de que não somos nós que percorremos a vida, mas é ela que nos percorre, implacável. Inevitável, como você disse. Não é possível resistir-lhe ou dizer não. Talvez à medida que batamos a cabeça em sua couraça dura possamos fazer surgir uns arremedos de o que quer que seja que ela nos reserva.

2. Para a geometria euclidiana, uma reta é a menor distância entre dois pontos. Também é, curiosamente, a imagem do mais perfeito labirinto borgiano. Em “A Morte e a Bússola”, o criminoso que arma (como um brinquedo de armar) a conspiração para assassinar Lönrot fala do labirinto que é uma linha reta. “Nessa linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero detetive.”, diz. Trata-se da linha do paradoxo de Zenão, um desses temas obsessivos de Borges. E no entanto, a geometria não-euclidiana supôs coisas novas a esse respeito. Se o espaço é curvo, uma reta pode ser infinitamente mais distante do que uma aparente errância…

3. Pareço-me a mim mesmo ter-me armado uma armadilha. Não estamos sempre fazendo isso? Atabalhoados, apressados, a procurar não sabemos bem do quê. Abrindo caixas aqui e ali, só para encontrá-las vazias, cheias de fantoches, de ilusões.  Não podemos ouvir o ruído da canção que nos chama para casa, mas ainda assim o ouvimos. Corremos, corremos, e quando menos esperamos, num tropeço – uma pedra no meio do caminho, afiada, que parece nos lançar em direção ao riacho que corre pelo quintal – encontramos a Alegria.

Abraço forte,

Thomaz

[Em resposta a: Stefano/Thomaz #5]

 

João/Stefano #5

Querido Stefano,

Pelo que me lembro, a falácia de apelo ao antigo consiste em (ai, as chatices das definições) dizer que uma ideia defendida por uma fonte antiga, ou mais antiga do que outra, é boa, ou melhor que outra, por esse motivo. Não pense isso de mim. Isto, em relação ao pensamento medieval, de forma alguma eu sustento. Quero que fique claro: não há razão lógica alguma para que eu me sinta atraído pela Idade Média. O que posso dizer é que algo na visão de mundo (ou devo dizer no mapa do universo?) medieval responde a alguma vocação profunda em mim que me escapa à consciência. A lógica está a léguas desse mundo.

Vou aproveitar que você tocou no assunto para expor algumas das minhas ideias sobre esse revival da Lógica Formal aqui. Peço desculpas se me alongar no assunto, mas é que já estou vendo algumas repercussões perigosas dessa tendência e gostaria de me manifestar sobre elas. Esta também não é a reação a uma crítica (eu entendi o que você quis dizer); apenas a minha perspectiva, que quero discutir com você, sobre um fenômeno.

Existe uma teoria, a qual não aceito, que propõe um certo comportamento humano como uma constante universal, às vezes até como um instinto biológico. Esse comportamento seria o costume de argumentar para vencer um debate em vez de para refletir de maneira frutífera sobre uma questão. Esse costume é típico de umas certas pessoas que estudaram um pouco — às vezes bem pouco — de lógica formal e superestimam seu poder, ou simplesmente não entendem seu propósito. Mas não cito a teoria só por isso. Cito porque a teoria em si é um exemplo do que esses pseudo-logicistas (doravante antalógicos) estão fazendo: emprestando o estatuto de critério de verdade a uma simples ferramenta de pensamento.

Os antalógicos não usam a lógica como uma ferramenta de crítica ou de autocrítica. Não, meu caro amigo, a intenção deles é bem clara. Quando um antalógico faz um post em seu blog mostrando falácias no célebre discurso de Caetano Veloso intitulado “Você é burro, cara” com o objetivo de comprovar a irracionalidade dos “esquerdistas médios”, o que ele está querendo dizer é: eu sei mais de lógica do que você, portanto eu estou sempre certo. E nisto está cometendo quatrocentas mil falácias de uma vez (um antalógico provavelmente apontaria que na verdade é só uma falácia, porque antalógicos também costumam se esquecer de que a linguagem é quatrocentas mil vezes mais significativa do que a lógica).

Durante as férias, eu ouvi um curso de Oxford de lógica formal em podcast (não pergunte). Foi um bom curso, me ensinou o que eu queria. O único problema do curso é o título: Critical reasoning for beginners. Quer dizer que para ser capaz de pensar criticamente eu tenho que saber lógica formal? Mas que disparate! Muitos adolescentes e até crianças são capazes de escrever longos textos, limpos de falácias formais e informais, valendo-se apenas do senso comum que adquiriram em fóruns de Internet. Por outro lado, Olavo de Carvalho é um dos grandes especialistas em lógica formal no Brasil. Imagine.

Em tempo: a lógica dispõe de meios e princípios para que ela mesma possa brilhar sem o sacrifício do bom senso. E os bons logicistas de verdade fazem uso dessas ferramentas. Mas eu dificilmente acreditaria que o antalogicismo provém de uma ingênua falta de prática com argumentos reais em discussões genuínas. Ninguém se faz cego para com o bom senso e supervaloriza a forma de pensamento que lhe convém sem um certo interesse. Um antalógico está disposto a prejudicar a reputação da própria lógica como disciplina para decretar que as suas palavras é que são verdadeiras. Isso tem nome: egoísmo.

Por isso, acho muito válido, Stefano, o que você disse em defesa das falácias. A vida precisa ir além da lógica: às vezes a lógica é uma prisão. Acho que ainda vou propor, como professor de redação, o exercício de analisar uma daquelas discussões cabeludas de fórum dos tempos do Orkut. Há muito mais que se aprender ali, ao menos para alunos de ensino médio, sobre textos, argumentos e estruturas de raciocínio do que em categorias abstratas de lógica.

O que você acha?

Cavalarias e hipertextos,

João G.

P.S.: Não deu tempo de falar sobre meus estudos medievais. Em suma: estão em curva ascendente, pode ter certeza.

[Em resposta a: Stefano/João #4]

Thomaz/Stefano #4

Stefano,

Escrevo na urgência de que estas minhas palavras cheguem a você antes que minha última carta. Tô me sentindo um personagem de um romance existencialista. Sabe “A Náusea”? Quando o deslocamento tem um efeito físico, se torna uma sensação inescapável? Quando apertei o “Publish”, depois de mandar aquela carta, senti uma certa tontura, uma pressão na cabeça. Pode ter sido o cansaço, depois de um dia inteiro de trabalho e um excesso de pressão nos miolos. Mas não é nesses momentos de fraqueza que nos tornamos mais vulneráveis ao que insistimos em deixar debaixo dos panos? Nesse caso, penso que foi minha insegurança como escritor, emergindo da minha mente como um jack-in-the-box pra me dar uns tapas na cara. Comecei aquela missiva tentando sair da zona de conforto em que me havia instalado, dando uma floreada nas coisas, fazendo algo diferente. A partir do momento em que não gostei do resultado, crendo-o pouco natural, tentei voltar, mas por algum motivo minha entrada foi barrada. Comecei de novo, na esperança de chegar a algum lugar, mas eu patinava, calçado com meias de seda sobre gelo molhado. Aquelas perguntas foram surgindo: mas é assim que eu escrevo? Eu não considerava ter atingido alguma espécie de maturidade ou ao menos estabilizado meu estilo? Mas e o jeito como eu escrevia antes? Estaria assim tão ávido em abandonar a descoberta? O desespero foi crescendo, uma bolha que impede o ar de chegar aos pulmões. Pensei num jeito de resolver aquilo, talvez fosse melhor apagar tudo. Mas é esse o jeito de lidar com os monstros, deletando-os? Dei um jeito de fazer parecer com que tudo fora mais ou menos premeditado e publiquei. Um minuto antes, tinha a certeza de que ao menos minhas palavras dariam alguma discussão, mas agora… a emenda saíra pior que o soneto! O que acontece quando apontamos nossos mísseis para as fundações de nossas próprias casas? O que resta, depois que as paredes são derrubadas? Toda aquela conversa sobre desfiar e desconstruir me jogara em um estado de desamparo… Só escrevendo (para o João e para a Ana), pude voltar, aos pouco, aos batimentos normais do meu coração. Depois, decidi escrever esta outra carta, um aviso para os desavisados que tentarem se aventurar nos mares do incerto. Penso agora se o que estou fazendo aqui é uma explicação, uma narrativa ou uma resenha da última epístola enviada. Não posso decidir, somente enviar, antes que me arrependa de novo.

Mas faça o favor de responder: Para onde nós vamos agora?

Thomaz

[Em resposta a: Thomaz/Stefano #3]

Thomaz/Stefano #3

Stefano,

Esta carta é uma reunião de fracassos e estilhaços.

1ª tentativa: Que é uma carta senão a pálida impressão deixada na página pelo caos do pensamento que, submergindo a ânsia de dizer, se manifesta dos nossos mais profundos inconscientes quase à nossa revelia, mesmo que às vezes tenhamos a certeza de que só dizemos aquilo que queremos? O que é a página, senão o produto frágil e efêmero de um processo firme e laborioso conduzido por mãos robustas e sólidas através de tempos e locais tão apartados quanto situados no mundo? O que é a mão, senão…

Tenho a impressão de que poderia continuar isso eternamente, esse desfiar cuidadoso do tecido da nossa realidade, até que só restasse um amontoado de fios sob o qual ser enterrado. Se, porém, esse sucessivo coito interrompido, esse permanente gozo adiado, me levaria ao coração inominado da essência, não arrisco dizer. […]

2ª tentativa: Você fala em liquidez.

Tendo a enxergar a carta, no entanto, como um instante de solidez ao qual podemos nos agarrar para continuar, depois, a sermos levados pela corrente. Uma espécie de âncora que lançamos não tanto para permanecer, posto que já nos livramos das correntes que nos uniam a ela, mas como seixos de ferro que vamos deixando como joões e marias em nosso caminho para o exílio. Um itinerário de volta para casa… […]

3ª tentativa: Um texto é um jogo de encenações, não é? Mesmo quando o sabotamos e abandonamos, não estamos fazendo mais que cumprinterpretar nosso papel.

“Num momento de desespero calculado, ele pensou que não tinha mais nada a dizer.”

Perdoe-me pelo aspecto sinistro.

Abraço fraterno,

Thomaz

[Em resposta a: Stefano/Thomaz #2]

João/Stefano #3

Metalinguístico amigo Stefano,

Sabia que você entraria em grande (e rebuscado) estilo na conversação das cartas. Se você se sentiu pouco à vontade naquele registro, você só provou que sabe se sair com desenvoltura até numa variedade pouco familiar. A impressão que eu tenho é que você, sendo poeta, só consegue aceitar o valor mais estabelecido — digamos — das palavas após muito questionamento, e com muitas reservas.

Talvez, é claro, eu esteja completamente enganado.

Mas é fato que eu digo “querido” menos pela fórmula do que pelo significado da palavra “querido”. Fórmulas de saudação são o que menos gosto em cartas. Se sinto que outro adjetivo ou advérbio cabe melhor na situação, não hesito em modificá-lo.

E para encerrar este assunto, gostei muito das suas duas cartas, também estou contente com o hibridismo e não acho que você deva se preocupar com as maiúsculas se isso te incomoda. A carta, não esqueçamos, suporta a quebra de fronteiras de elementos genéricos como ninguém.

De volta à viagem: aceito a proposta. Não sei como, mas já sei onde e quando: Europa, segundo semestre. A gente merece.

Essa discussão sobre o velho e o novo comporta muito papo. Sinto que você (que já é realmente meu guia na Europa) e alguns outros amigos são para mim como guias do contemporâneo: por mim mesmo, eu acho que não saberia qual é a do século XXI. Note bem: não é que eu acredite que nosso tempo seja inferior de alguma forma aos anteriores. Eu sempre quis e quero compreender o tempo em que vivemos, me encontrar aqui, aprender a amá-lo, descobrir de que forma posso ser relevante e tal. Mas acho que não consigo fazê-lo espontaneamente, sem um certo senso de dever.

A satisfação que encontro em descobrir e redescobrir a Idade Média, por sua vez, como qualquer tipo de prazer, tem o seu lado de capricho, inexplicável, inconsciente. Vou tentar falar sobre o lado menos maluco.

Você já deve ter reparado no fenômeno do crescente número de entusiastas da cultura indiana ao nosso redor, muitas vezes adolescentes. O interesse nas formas de pensamento dessa civilização oriental é uma constante na vida do Ocidente, crescendo junto com a globalização. Muito disso, é claro, tem a ver com o gosto mesquinho pelo exótico, a autoafirmativa e enciclopédica compilação de estereótipos. Mas acredito que há um outro motivo mais profundo para essa importante redescoberta. Eu acredito que uma boa parte desses entusiastas percebem que as perspectivas mais convencionais ou mais familiares pelas quais eles aprenderam a ver o mundo não são suficientes para dar conta de sua (crescente) diversidade. Quando descobrem que existe uma outra perspectiva frente à realidade, impressionante, desenvolvida, capaz de fazer frente às convenções ocidentais modernas e, principalmente, que responde de imediato aos seus anseios mais profundos, sucedem momentos de epifania como este aqui:

Try to realise it’s all within yourself
No one else can make you change,
And to see you’re really only very small
And life flows on within you
And without you
.

O que acontece entre mim e a Idade Média é isso, com um detalhe a mais: em alguns sentidos (certamente em alguns não), os medievais são mais nós do que os indianos. Se eu sou capaz de detalhar esses “sentidos”, devo fazê-lo em outras muitas cartas. Mas acredito que aqui esteja bem próximo à fronteira da intuição inconsciente.

O que posso dizer é que Roma e a Grécia também são mais nós num sentido bem parecido. Com seu desenvolvimento militar, político e retórico, Roma é com certeza uma empolgante forma de nos enxergarmos em nossos antepassados. A Grécia também, com seus ideais de beleza e racionalidade, sua arte — mas esses mundos me parecem próximos, alcançáveis demais. É fácil demais, talvez, ver como nós pensamos muito como os gregos e como os romanos. Pensar como um medieval nos convida bem mais a uma experiência imaginativa. Já vi muitos adjetivos invejáveis serem usados em apologias às literaturas das duas grandes civilizações clássicas. Mas quando se fala de Idade Média, a descrição costuma ser única e característica: a literatura medieval é fascinante.

Há uma grande quantidade de pessoas que são atingidas de forma bastante inesperada por uma atração pungente pelos modos de pensamento do passado. Alguns estão caminhando tranquilamente quando se veem aprisionados sob um templo grego em ruínas. Outros, num passeio despreocupado pela praça da cidade, são repentinamente soterrados nas cinzas do Vesúvio. Eu, que vagara muito tempo sem rumo, num belo dia estaquei de súbito: de uma floresta escura, uma seta de arco-longo bretão vinha zunindo em direção ao meu peito.

Sinceramente,

João G.

[Em resposta a: Stefano/João #2]

Thomaz/Stefano #1

Stefano,

Está chovendo em Macondo.

Esta frase está, de certo modo (talvez não com essas exatas palavras), em Cem Anos de Solidão. Por algum motivo, acho-a uma das frases mais bonitas que já ouvi.

Quando falamos de frases e palavras bonitas, costuma ser assim mesmo. Sempre que me aproximo do assunto, lembro da informação, ventilada naquele filme maluco, Donnie Darko, de que o Tolkien achava “cellar door” a frase ou sintagma ou palavra mais bonito da língua inglesa. Até onde eu sei, ele não foi tão enfático, mas dá pra entender o sentimento. Se você imaginar um inglês pronunciando, “Celador”, fica parecendo o nome de um reino fantástico que o próprio Tolkien talvez criasse. Ao mesmo tempo, lendo assim, tudo junto, em português, soa como uma pronúncia mexicana de “zelador”. Essas coisas que as línguas têm.

Nesse meu caso específico, tenho algumas considerações a fazer sobre a beleza da frase. A começar pela chuva, que sempre me encanta. A chuva é uma coisa bonita demais. Seja quando vem numa garoa no fim da tarde enquanto o sol insiste em continuar aparecendo ou quando ainda só ameaça na forma de nuvens cinzas e de ventos gelados que parecem ser os da mudança chegando e me dão a sólida impressão de estar prestes a tropeçar num outro mundo… Tem também Macondo, um nome muito precioso, por si só uma pequena pérola. E por fim, last but not least, a evocação que essa frase faz de um outro lugar que não aqui, um lugar no qual estivemos e vivemos, um lugar do qual saímos mas para o qual não retornamos. Um lugar do qual temos notícia, onde ainda é possível acontecer a beleza, mas do qual estamos apartados.

Este último elemento talvez precise de mais explicação. Pelo que me lembro, a frase aparece em uma carta que a mãe do Coronel Aureliano Buendía escreve para ele, que está longe, em alguma guerra. Qualquer detalhe a respeito se perdeu para mim, e só o que tenho ainda são essas noções vagas, e a frase, que não se apaga.  Mas a frase me ajuda a lembrar, ela faz o resto emergir, de alguma maneira, e se esse resto não é mais objetivo que um sentimento – qual o problema? Aureliano, ou um dos Aurelianos do livro, está longe de casa há muito tempo, e se comunica por cartas com os seus. É o único jeito dele se ligar a Macondo, dele estar em contato com esse mundo de inocência perdido. Por causa disso, as palavras das cartas que recebe da mãe são como uma revelação.

Isso tudo parece falar do paraíso perdido e seu avatar, a memória. Parece falar, a mim, daquilo que eu não tenho mais. Li Cem Anos de Solidão em uma época diferente da minha vida, uma época em que toda leitura era necessariamente uma descoberta. Amei profundamente o livro, a ponto de colocá-lo em uma lista que fiz com meus dez preferidos. Nunca mais o li, mas ele continuava na lista ano passado, quando percebi que desde que a fizera, no segundo ano do Ensino Médio, pouco ou nada mudara nela. Isso me pareceu impressionante, considerando que eu sou um estudante de Letras, e seria razoável pensar que eu leria, no meu curso, um livro que me marcasse assim tão profundamente, um livro que mudasse minha vida…

Conclui que estudar literatura me fizera perder o tesão por ela, perder a capacidade de descobri-la com alguma pureza. Essa triste epifania me jogou em dias de pura inadequação, de pensar na curva errada que eu devia ter feito em algum ponto do caminho. Mas depois fui percebendo – em conversas com o João, com a Ana -, que o problema não estava tanto na literatura, mas em “mim” – em quem eu fora e em quem havia me transformado. É claro que os livros nunca seriam como foram na minha adolescência, quando eu os estava descobrindo, como se louco de paixão. Minha relação com eles se transformara num relacionamento sério, a longo prazo, e nunca poderia voltar ao flerte e ao namoro simples. Mas ela também não precisaria ser um casamento de fachada, em que a frieza dos gestos cobre com sua pátina os mecanismos da conveniência. Poderia ser – e é nisto que busco transformá-la, e é isso o que me salvou – num constante processo de reconhecimento, num amor maduro, feito pra durar.

Toda luz que toca nossa infância e juventude tem um brilho especial. A memória é um país infinito, uma terra incógnita repleta de magias que não  conhecemos bem. Quando o Coronel Buendía é fuzilado, por algum contra-revolucionário ou coisa que o valha, lembra-se de quando seu pai o levou, ainda criança, para ver o gelo. É a cena que abre o romance, e empresta a ele seu tom mágico, o ruído do instante produzido na memória mesmo pelas fricções mais ásperas da realidade.

Meus melhores desejos e intenções,

Thomaz

P.S.: Já havia começado a escrever esta carta quando recebi a sua. Teremos tempo, no futuro, para conversar sobre o que você disse.