Stefano/João #9

Sorbonne, 24.09.13

João,

Eu me questiono também o motivo de ter saído. Curiosamente, quando vim, parecia bastante claro, mas o lento correr dos dias tem me mostrado que isso é exílio e não intercâmbio. Talvez eu ande meio triste e isso impregne na minha roupa e na minha escrita de uma forma muito além do que eu possa prever, dado mesmo a minha inclinação para o exagero, o sentimentalismo e o drama. Mas reitero: isso é exílio. Não necessariamente político e doloroso como os ocorridos em épocas de guerra e de ditadura, mas não é definitivamente o oposto. Não sei, mas essa cidade não me encanta. É claro que, por fotos, me encantava e, obviamente, existe deslumbramento nos pontos turísticos. É claro. Mas não há encantamento. E parece-me curioso isso: não estar apaixonado no começo e passar pelo processo de desapego e saudade ao longo dos meses – até o ponto de suplicar a volta para casa.

Não chego ainda a suplicar a volta, mas olho para as pessoas que passam ao meu redor em bandos e penso: eu não sou parte de tudo isso. Eu, por outro lado, sinto-me dentro de uma esfera nauseante e claustrofóbica em que existe espaço para mim – e somente. Sinto a despatriação de mim mesmo ocorrendo lentamente. Aqui, meu caro, eu sou triste. Eu não falo alto, eu não sorrio fácil e nem sequer sei fazer piada. Aqui eu sou tímido, almoço sozinho e as poucas vezes que tenho alguém comigo geralmente não sei ser menos gentil que um livro de idiomas ensina e mais espontâneo do que uma fita cassete pronta a recomeçar o curso intensivo de verão. Mas isso me assombra: aqui, eu sou triste. Eu tenho olheiras, como pouco, falo pouco e uso fones de ouvido. Eu nunca usei fones de ouvido como forma de espantar pessoas, mas aqui eu uso. Aqui eu ando constantemente sozinho, ouvindo estranhos e desenhando rostos no metrô. Escrevo pouco e sinto saudade o tempo todo – a ponto de chorar em museu.

Um amigo meu, que aqui mora faz anos, me perguntou se Paris já havia sugado as minhas energias. Eu achei curioso a princípio. Respondi (e um pouco mentindo) que Paris ainda me fazia bem. Ele me disse algo, então, que agora entendo: é melhor que você seja turista sempre, que não more no centro e só passe por Paris todos os dias. É melhor que sua casa seja em outro lugar, talvez assim você tenha uma impressão menos angustiante dessa cidade. Paris é apertada, quieta, triste, cinza. Paris é linda também, mas acho curioso que as únicas cores que eu veja estejam nas calças compridas, nos macarons e nas flores dos jardins. O amor se esfriará no coração de muitos, penso muito e constantemente. Paris é, de fato, uma cidade para ser contemplada, visitada, deixada. A permanência fará, hora ou outra, na feição os lábios tristes de alguém que lê e apenas lê nos metrôs. Ninguém se apaixona quando novas pessoas entram no vagão. Contempla-se apenas.

E em mais um dia de respostas cinzas, recebi pelo correio seu cartão postal. No meio do meu silêncio reiterado, fiquei brincando de olhar o céu pelo buraco do papel. E percebi com espanto: por trás de tudo,o por-do-sol ainda não é cinza. O dedo da última carta, pra mim, aponta para um lugar em que o cinza é só uma lembrança de um exílio. Ou de um Exílio. É, aqui eu sou triste.

Com açúcar, com afeto,
S.

Stefano/Thomaz #7

Paris, 07 de Setembro de 2013.

Toumat,

Esta não é a carta que eu lhe escrevia. Na verdade, eu fiquei um bom tempo para poder responder suas indagações e, um tanto quanto perdido, eu me via mergulhado em uma catastrófica avalanche de palavras difíceis e vãs filosofias. Mas hoje, sentei-me na Place Monge e percebi que eu tenho, por fim, algo a lhe dizer sobre o real sentido da resposta de sua questão. “Para onde vamos?” você me dizia. E eu lhe digo agora o que eu cruelmente percebi.

Eu vim.

Ainda que exista o intangível lugar para o qual estamos indo, por vezes também chegamos – o processo não é simplesmente uma fuga constante e desenfreada. Quando menos se espera, chega-se também. E cá estou. Eu cheguei nesse ponto culminante com o qual eu sonhei tanto e, infelizmente, como você disse, a beleza e a força da expectativa é o prestes. O prestes é fértil, mas agora sinto a germinação do sonho romper minhas estruturas com suas frondosas raízes. Ao contrário do que eu dizia, parece-me agora que a beleza de tudo é o retorno. Num puro platonismo, como se tivéssemos despencado de uma redoma elevada e vivêssemos na tentativa de voltar a sentir o que antes sentíamos e andar com a leveza que antes andávamos.

Nós não vamos para o Céu, nós retornamos para lá.

Acho que é isso que eu sentia a todo tempo, mas não podia perceber ao certo. Só agora entendo que as nuanças no percurso são deveras necessárias, do contrário a padronização acaba por cortar pela raiz as possibilidades de sensação. Lembro-me daquela canção que diz: “o mesmo trem que chega é o trem da partida” e parece óbvio nesse instante que a viagem é sempre uma. Mas a montanha-russa vai de costas o trajeto todo. É o que penso agora, talvez um pouco porque o retorno se tornou o meu apogeu intangível para o momento. Assim, pender no retorno é o que parece tirar-me o fôlego no momento. Nós retornamos sempre como pequenos e curiosos Benjamins retrocedendo na própria história – dizem até que a natureza humana é má e que crianças são diabólicas. Ou seja, estamos em primeiro momento no estágio mais grotesco da involução, porém com o tempo vamos retornando conscientemente ao ser elevado e, cada vez, mais perto do Céu.

Eu penso em tudo isso agora, enquanto respiro aliviado a brisa dessas árvores frondosas.

A Place Monge é definitivamente um lugar encantador para se pensar em tudo isso, enquanto os rapazes ao meu lado falando sobre seus desafetos amorosos em Espanhol. Tem tanta gente nesse mundo indo e vindo em constante retorno e nem por isso compartilhamos as nossas órbitas. Solitários. Essa gente é muito solitária por aqui, acho isso sempre curioso e inacreditável.

Sou um louco ou acostumar-se com a solidão não é assim deveras árduo?

Com açúcar, com afeto,
S.

Stefano/João #7

(ou “Sou ruim com encontros marcados e por isso demorei tanto para responder”)

Cachan, 6 de setembro de 2013.

Jean,

Sua carta me intriga, mas eu gosto dela, do fato de ter somente uma foto e ser, assim, um relato de uma vida toda. Vida talvez sua uma hipérbole descabida, mas de um recomeço de tempo pelo qual passamos. Já bem acomodados, aqui estamos em solo europeu. Curioso que a nossa experimentação dos lugares é algo completamente novo, porém a existência dos signos é completamente superior à nossa existência. Por isso, eu retomo a foto: a estátua é uma existência por si própria, objetivada no mundo, mas nós a possuímos. Nós é um outro impropério, quem a possui é você, mas a atitude de descoberta compete a ambos – até o idioma é outra dessas jornadas ardilosas pela qual você está se aventurando.

Somos parte das grandes navegações modernas que, na verdade, vão em busca de conhecimento, e não mais necessariamente de ouro e especiarias. Quer dizer, reflito agora que toda expedição tem um caráter de exploração e esgotamento do outro: vou até uma terra distante parasitar o conhecimento, a riqueza, a mão-de-obra, as praias, os monumentos, os museus. Um desejo imperialista que se mantém, talvez, que nos constitui – quem sabe. Lembra que apontaram a minha resistência em moralizar na defesa de tese? Pois bem, cá estou eu transformando em hipótese o que poderia ser conjectura.

Mas, de todo e qualquer modo, a estátua aponta para um dos pontos cardeais altivas. A despeito da orientação ser sempre o norte, penso que ir já é um aventurar-se bastante grande. Ir para o norte é o que as caravelas faziam, hoje nós vamos. Percorremos. Ganhamos território e expandimos. Cada um para um ponto diferente, na distância que impõe ao coração a necessidade de unir. Acho que é isso, porque a estátua é de níquel. E metais não sentem frio, nem medo, os sentimentos que um bom navegador não se deve permitir sentir. A despeito disso, nós somos humanos, graças a Deus – com a possibilidade de ter raízes e sentir saudades, apesar de gelidamente apontarmos.

Deixo-lhe a réplica do desafio fotográfico como pergunta.

20130906-131955.jpg

O que é que vês?

Com açúcar, com afeto,
S.

Em resposta a: João/Stefano #6

Stefano/Thomaz #5

Thomaz,

Brevemente: o trabalho e a vida me impediram que revisitar o universo cibernético por alguns dias, por isso a ausência. Ainda que eu pudesse alegar ter-me omitido pela aspereza em engolir suas palavras últimas; seria deveras poético, mas ainda assim uma mentira.

No entanto, confesso que suas palavras me geraram tontura – não necessariamente no mesmo sentido que você afirmou, talvez nem na mesma proporção, ainda assim uma tontura. Uma aflição de não saber como ao certo penetrar na dura derme de seus fragmentos. Pensei, em primeiro momento, de comentar cada um dos fragmentos separadamente. Vetei-me, ou melhor, deletei-me; optei por outro caminho, na verdade, o caminho que você mesmo m deixou aberto:

Para onde nós vamos agora?

Tenho para essa pergunta três respostas possíveis, que não são necessariamente três estilhaços de fracasso, ainda que não sejam necessariamente três verdades universais. São, de fato, conjecturas – ideias que me são recentes e caras também, por isso discrimino-as neste instante, sem a certeza que serão ou não suficientes. Até por que certas dúvidas não são decifráveis assim tão fácil, não é mesmo? Tentarei, de alguma forma, tangenciar caminhos de resolução.

1ª: Estamos indo para a vida

Definitivamente, isso é uma dessas verdades universais vazias que são, geralmente, recitadas aos quatro cantos do salão em dia de Colação de Grau: “o final da Graduação é o começo da vida”. Chamar a fase tida como adulta como a representação da Vida é uma metonímia que, de certa maneira, vai contra as ideias todas de processo contínuo de formação. Aliás, acho que a Vida é algo maior do que a nossa própria existência, mas enfim: tomemos a fase adulta como a vida. Começamos, então, essa nova fase – é para lá que estamos indo. E vamos para lá a toque de caixa, mesmo sem vontade ou fazendo corpo mole, afinal esse é um destino que não compete a nós, ainda que nos defina também. As fases do percurso humano nos acometem como doenças silenciosas: imprevisíveis.

Ir para a vida é um processo ruim? Tem suas peculiaridades positivas e negativas, mas sobretudo é inevitável. E eu não considero esse um processo poético, mas sim biológico, social, econômico, porque compete ao fato de ficarmos mais velhos, pagarmos contas, gastarmos o próprio dinheiro, ter um carro, um emprego, uma família, filhos, um cachorro, um pé de fruta. Não, não tenho a pretensão de dizer que a vida é simplesmente um processo bruto como a existência de uma drosófila, mas por isso mesmo dividi o caminho que percorreremos a partir de agora em três.

2ª: Estamos indo para Lá

Lá? Sim. Veja bem, toda trajetória começa Aqui – e não interessa situar esse ponto no Espaço-Tempo neste momento – e termina – se terminar – Lá. É o outro ponto da linha. Não é assim, porém, tão trivial falar do lugar para onde vamos, porque, para mim, não é o mesmo sempre e está em constante mudança o tempo todo. Um exemplo simples: quando eu entrei em Letras, eu achei que sairia Poeta, com dois livros debaixo do braço e uma vida de palestras e lançamentos garantida; no entanto, encontro-me agora com propostas de intercâmbio, Semiótica dentro da cachola e uma série de conclusões a respeito do(s) Sentido(s), inclusive na Arquitetura. Onde é meu Lá agora? Agora, nesse exato momento, em Paris – e nem isso é definitivo. É um sonho, uma proposta. Uma idéia. Digamos, um rumo. Temos um rumo.

Portanto, essa é a contra-metade da Vida apresentada no primeiro tópico. Ao passo que, por um lado, passamos por um processo animal e biológico que diz respeito aos processos de envelhecimento e amadurecimento, do ponto de vista social, há também um lado mutável e indecifrável, mas completamente construído na temporalidade presente. Aqui, sinto qualquer coisa de Mr. Nobody (2009, Jaco Van Dormael), quando diz respeito dos múltiplos caminhos que poderíamos seguir e todos os portais que poderíamos abrir e fechar. O Lá não é concreto de maneira nenhuma. E assim como a poesia, se pensada do ponto de vista das Funções da Linguagem de Jakobson, o Lá se importa com a Mensagem. Não com os fatos em si, porque as categorias – Crescer, Casar, Ter filhos, Ter uma carreira, Fazer dinheiro, Ser feliz, Morrer – podem ser atingidos de formas das mais múltiplas possíveis. O Lá nos permite, como poetas, brincar com a existência e construir a linguagem com a qual contaremos nossa experimentação.

3ª: Estamos indo para o Lar

Enquanto a Vida e o Lá são, ainda que contra-metades, constituintes da Existência concreta, existe um outro lado que não é físico. De fato, faz parte de nossas bases filosóficas-religiosas e de criação falar sobre uma constante caminhada rumo a um lugar que transcende. Definitivamente, estamos indo para um lugar que nos levará além de nossa própria materialidade, mas para isso é preciso caminhar – e mais do que isso: é preciso ultrapassar a Vida, o Lá e, ainda assim, ter vontade e disponibilidade de continuar. Ir além é a premissa de chegar de frente para os portais. E então me questiono: mas qual o caminho?

E essa pergunta é universal, constante, pungente. Não caberia aqui a resposta – não que eu a tenha, mas empresto-a da Bíblia. Mas nem assim, emprestada, é trivial. Seguir por Aquele que é Caminho, Verdade e Vida é, sobretudo, um desafio que perscrute a nossa Vida e o nosso Lá. Se eu pudesse sair de minha própria Existência para enxergá-la de cima, gostaria de enxergar as minhas tramas todas convergindo para esse Lugar Infinito.

Quando você diz, caro, sobre amadurecimento, para mim é o reflexo de um contínuo caminhar (ou Caminhar) em direção a esses três lugares. Agora, se deseja saber se eu sei defini-los com maior precisão no Tempo-Espaço, peço licença para não responder. Não porque eu saiba e deseje omitir, mas é porque eu não sou Senhor da História e não me compete a onisciência. No entanto, vou para a França, em busca do Lá. do Lar. da Vida.

Em busca, acho que essa expressão define a Existência.

Alguma resposta ou vagueei no caminho obscuro da digressão?

Com açúcar, com afeto,

S.

[Em resposta a: Thomaz/Stefano #4]

Stefano/João #4

Cavaleiro João,

Começo a gostar da transgressão do vocativo – ou quem sabe de sua multiplicidade e/ou liquidez, conceitos pelos quais tenho tamanho apreço, devo confessar. Outra confissão vai de encontro à sua análise: poeta sou e, de fato, é minha sina tentar o tempo todo extrapolar os sentidos prévios. Sobre essa questão, numa analogia completamente aleatória que me surgiu, relembro de um saudoso professor (mas não me pergunte o nome, pois não me lembro) do IEL que, dando aulas de Gramática, extrapolava sempre contextos possíveis para que os ditos períodos agramaticais adquirissem sentido. Sou, portanto, um desses desbravadores das possibilidades linguísticas – rio-me com a ideia de chamar-me Borba Gato das Letras e ter um monumento mal feito em São Paulo qualquer tempo depois de minha morte. Borba Gato: vejo nas palavras sempre uma floresta densa para ser desvirginada.

E quanto às letras capitais, uma última observação: tenho gostado delas por ora; fazem parte desse mise en scène que construo em minha mente ao escrever minhas cartas. Outro dia mesmo vi em um blog uma extrapolação de como seria Shakespeare nos dias de hoje – um tanto quanto seguidor dessa tendência hipster, óculos Wayfer, a cara de quem frequenta sebos e olhar de quem procura futricar na realidade mais do que deveria, enquanto vislumbra o mundo pela janela do Starbucks. Eis Shakespeare moderno e, por que não?, quem me imagino ser quando escrevo, ainda que pelo computador, uma carta. Essa atividade anacrônica e ímpar que temos desenvolvido.

Mas enfim, dessa vez me alonguei em dois parágrafos meta-linguísticos {esse hífen foi colocado automaticamente pelo corretor que se diz atualizado pelo Novo Acordo Ortográfico. Confio, por isso, nele e mantenho}, se continuar nessa toada logo escreverei um tratado sobre Linguagem e não uma carta pessoal. Aliás, como ri-se por aqui? Risos, assim por extenso? Risos. Façamos uma distinção, então, entre Breves, Prolongados e Gargalhadas. Gargalhadas Descontroladas valem apenas em casos extremos em que o humor for atingido enquanto êxtase. Por exemplo, agora, escrevendo isso me acometo de um mental e contínuo Riso Prolongado. E perceba como essa insistência humana em categorizar se revela sempre e desnecessariamente: já pude inventar três formas de rir-se na carta, com nomenclatura e definição por diferenciação.

Chega de Linguagem, deixo-me deixe-me falar da vida.

De fato, você ama o que estuda. Pude perceber nitidamente isso com a sua última carta – e mesmo porque as palavras pareciam ter sido mergulhadas em um licor doce e inebriante no processo de escrita. Pela primeira vez, caro, entendi que você ama a cavalaria, as armaduras, os bosques, as flechas dos bretões. E ainda que certos juristas (ou outros senhores da retórica) apontariam para você seus dedos e seus argumentos de que, de fato, sua declaração não passa de uma falácia de apelo ao antigo, não importa.

Explico-me, primeiro, porque tocar no assunto do raciocínio falacioso. Nas últimas aulas que tenho assistido na escola em que trabalho, as professoras de Português abordaram com os alunos essa temática e sua problemática para o gênero argumentativo escrito ao qual estão expostos, por causa do Vestibular. De fato, falácias são nocivas para o discurso acadêmico e fragilizantes para as colunas resistentes da Lógica – se pensarmos num mundo objetivado, em que só são válidos discursos pautados na argumentação mais enrijecida o possível.

No entanto, tenho me questionado desde então, se não é da própria falácia que vem a oportunidade de encontrar a certeza. A falácia gera uma dúvida e uma possibilidade, pois se configura como essa quebra da Lógica que estabiliza os meios e os inteiros em harmonia no universo. A falácia, não a mentira, é importante para a condição humana – para que não sejamos máquinas preenchidas de zeros e de uns. Ainda que sua afirmação seja uma argumentação falaciosa, {veja bem que isso não é uma crítica, porque o mundo é constituído assim} é uma das mais bonitas e reveladoras a seu respeito que já ouvi.

Você precisa do Quixote para ser João, entendo por fim. O que está em jogo, pois, não é construir uma argumentação para passar no Vestibular ou convencer alguém de que se deve ou não diminuir a maioridade penal; aqui falamos de identidade, de descoberta, de eixos, de permanências, de falhas e de entregas. Aqui falamos da vida e, ora, não há mal nenhum esquecer a Lógica por uns instantes. Prefiro até que não venham racionalizar e biologizar certas peculiaridades que competem ao campo obtuso das formulações do que, na Idade Média, chamariam Alma.

A condição humana depende das generalizações apressadas e dos raciocínios non sequitur. Precisa do apelo ao novo, ao velho, à Idade Média. Precisa de superstições, de fé, de milagres e explicações que não necessariamente sejam coerentes. Tudo isso constitui o contrapeso da balança que nos impede de cair direto e reto no cibernético apocalipse em que nos tornamos máquinas. E apenas máquinas.

Confesso que a arma bélica que me atinge não vem zunindo do meio de um bosque impenetrável – ainda que me tenha chamado Borba Gato a pouco tempo. Também não estou preso no Templo de Atenas, mas veja só: nem por isso todas as essas questões deixam de me consolidar. Compreender a Hipermodernidade não é tão necessário para estar vivo e interagir interpessoalmente, mas veja que ter passado pela Idade Média é condição inalienável para o momento presente ao qual chegamos.

De fato, somos frutos das cavalarias – em alguma medida, em algum tempo, de alguma forma. Confesso que eu nunca fui fã de História no Ensino Médio por nunca me entender dentro dela. Hoje me entendo, ainda que seja tarde para voltar ao aprendizado juvenil, hoje me entendo parte do tempo passado. Consequência dele e formador de um próximo – que também nos chamará de História.

Aliás, como vão seus estudos sobre as questões medievais? Frutíferos?

Com açúcar bretão e afeto cosmopolita,

S.

[Em resposta a: João/Stefano #3]

Stefano/Thomaz #2

Querido/Caro Thomaz,

De uma forma não completamente consciente e direta, ainda mais por que você já havia começado a escrever a carta passada quando recebeu a minha primeira, você acabou respondendo os meus questionamentos acerca da própria dicotomia entre as formas de escrita no papel ou no computador. Aliás, de uma forma tão poética que chegou a emocionar-me. Permita-me citar especificamente o trecho:

É o único jeito dele se ligar a Macondo, dele estar em contato com esse mundo de inocência perdido. Por causa disso, as palavras das cartas que recebe da mãe são como uma revelação.

A carta carrega consigo, de fato, o valor epifânico de um encontro divino, você está certo: todos os momentos que antecedem a chegada do envelope na caixa de correio se assemelham àqueles anteriores ao contato transcendente. Estamos nós também sempre contemplando nossa Macondo de longe, como estrangeiros exilados; pois a vila em que costumávamos habitar, na qual moram cerca de trezentos habitantes também, sempre se aloja no passado. Passado: esse tempo irrevogável e intangível. Macondo só existe porque não a deixamos morrer – e porque chegam cartas em certos momentos, mesmo se à espera delas ou não. E ainda que estejamos perto de todos que constituem nossa salva-guarda, ainda estaremos longe de um outro lugar antecedente: o Lar (ou o Paraíso, se preferir), seja o cristão ou qualquer outro. Afinal, penso que cada um, quando questionado a respeito das questões fundamentais sobre a Origem e o Destino, descreve esse lugar oculto de seus próprios olhos mesclando todas as influências externas as quais teve contato, mas principalmente revelando tudo que lhe promove aconchego. O Lar é, portanto, o espaço secreto em que reside nossa apaziguada alma cansada. E as cartas? Bom, as cartas são os cordões umbilicais que impedem o desgarramento completo das origens, de Lá. Então, posso dizer que entendo agora o valor real das cartas, o qual havia inconscientemente deixado de lado na minha primeira escrita: são saudosistas – mas um saudosismo epifânico. Como encontrar-se com o velho Deus que sempre é Deus, porque não muda – nem na Essência e nem em sua reiterada representação no nosso inconstante e perene caos (da vida e da mente).

Ficamos assim, então: na escrita de cartas como forma de não perder os sonhos. A despeito do tempo que passe ou da distância que se estabeleça entre nós – por viagens, por trabalhos ou pelas intempéries da vida – estaremos conectados. Um cordão umbilical nos alimentando da memória fragmentada dos planos que construímos. E eis aqui uma contiguidade entre nós: quando resolvi-me por Letras foi por Amor à Literatura e por uma crença naïve de que seria fácil, possível e imediato viver de poesia em terras canarinhas. No entanto, assim como você, foi o estudo sistemático da linguagem que castrou-me a poética: passei boa parte de minha graduação sentindo-me um estranho no ninho. Até que encontrei um subterfúgio, um caminho tangente pelo qual senti as borboletas no estômago da paixão de novo. E voltei à escrever poesia; mas acima de tudo: voltei a acreditar que tenho em mim todos os sonhos do mundo. (Obrigado, Pessoa, por lembrar-me sempre dessa condição).

Por isso, precisamos das cartas: para lembrarmos dos dias em que vimos os flocos de neve e também tocamos na superfície alva e afofada. Macondo está em nós e somos nossas próprias oportunidades de epifanias – a espera pelo diálogo que unirá as pontas todas dessa manta que tecemos, ora juntos, ora separados. Essa manta que, na verdade, não é nossa, mas nos enovela também, porque ela data da criação do universo, quando no encontro entre o divino, o etéreo, o eterno e o material houve a fagulha que deu origem a tudo que contemos hoje. Precisamos das cartas para não cairmos no ostracismo de se permitir acomodar com o que tem para o hoje: é preciso de mais. Sempre e constantemente. Ambicioso? Não, deixo a ambição aos economistas envolvidos na Bolsa de Valores. Eu chamaria de necessidade. Precisamos dos sonhos, do metafísico; precisamos do que é raro, do que é distinto, mas que, ainda em tal condição rarefeita, um dia foi a chama que iluminou a escuridão do nosso caos. Então, temos essa incrível e irremediável missão: impedir que rompamos o cordão umbilical que nos liga à leveza dos olhos fechados quando num estado de transcendência.

Esse é o valor da carta, suponho. Ou melhor, sua missão. Nossa missão.

Antes de despedir-me, digo-lhe apenas uma frase, que figura entre minhas preferidas. Peço licença para me igualar à Gabriel García Márquez, posto que eu sou o autor do que direi, mas é algo que escrevi num dos dias em que sentia-me coberto por nuvens da minha própria desilusão. De fato, foi a primeira vez em que eu entendi que o meu vilão era eu e, caso eu não matasse minha própria esfinge, continuaria assim por muito e muito tempo. Escrevi, por fim, um desabafo, uma corredeira que permitiu-me começar (aos poucos) desafogar. Eis:

desanuviar pra ver os sóis.

Os sóis estão aí e por que não podemos ser nós mesmos a assoprar as nuvens uns dos outros?

Com açúcar, com afeto.

S.

[Em resposta a: Thomaz/Stefano #1]

Stefano/João #2

Querido João,

Ainda tenho problema com o vocativo: me soa amargo. Não, não é amargo; talvez ocre. Me soa estranho, como uma polpa meio verde de fruta: o gosto que deveria ter está lá, mas nem por isso é saboroso. Não gosto, ainda que goste – no limiar paradoxal entre as duas faces dessa moeda, chamada por Freud, de Amor-Ódio. No entanto, é cabível de discussão, talvez você me convença do uso do “querido” ou mesmo do “caro” ou de qualquer outra dessa estirpe, porque usar um “mano” ou “brother” ou uma dessas categorias mais tidas como recentes parece-me um impropério. E eis-me cá de novo no maneirismo, no limiar entre a carta e o e-mail; essa é uma condição que talvez perca, mas por enquanto o hibridismo me soa agradável. Quanto a você, não sei, porém eu imagino-me com uma pena cibernética quando escrevo. Enfim, tudo isso para dizer que o “querido” ou mesmo o “caro” me soam distantes: no tempo linguístico e no afetivo também. De qualquer forma, feito um comentário metalinguístico que me incrivelmente me encanta em inícios, vamos à resposta – que é a parte interessante de tudo isso.

Dá-me um frio na barriga pensar em intercâmbio – ainda que por enquanto seja só o seu, mas eu tenho uma verdadeira inclinação pelo gosto de viajar. E mais do que isso: o gosto dos preparativos; acredito, assim, que seja essa a única espera que eu suporte carregar. Quantas vezes já não me peguei fazendo contagens regressivas para meros passeios para terras não tão distantes quanto o reino da Dinamarca. Ou mesmo, tão distante quanto o continente europeu, posto que nossos ensejos não se limitam à terra da corte de Hamlet. Nem que os sonhos de longo prazo – que durariam longos meses – caiam por terra, penso que não devemos por nada perder a vontade de fazer um outro, ainda que curto, para suprir a ânsia pelo solo europeu. Portanto, firmo nessa carta um pacto: de uma forma ou outra, fomentados pelo governo, pelo nosso próprio bolso ou por recitar poemas no metrô ao som de uma sanfona rangendo, vamos passar um tempo no escapismo intercontinental. O que pensa sobre a proposta?

E quanto ao roteiro, me encanta. De fato, eu fico feliz que você seja o contra-peso de minha balança – e já me explico. Gosto dos roteiros banhados ao moderno, seja na Arquitetura ou na Arte, por isso poucas são as vezes em que me lembro de colocar nas minhas andanças a visita a castelos, túmulos ou pequenos recantos históricos que guardam, é claro, mil encantos. É piegas falar mil encantos? Sim, é; mas tenho acreditado por hora que é a mais pura verdade. Sobre isso, uma digressão: nas minhas novas andanças pelo próprio centro (histórico?) de Campinas tenho encontrado pequenos cantos tão bonitos e agradáveis de se contemplar e frequentar. Sejam mosaicos em paredes de revés e onduladas; sejam fachadas conservadas e restauradas. E mil encantos que antes mesmo me passavam despercebidos. Posto isso, que é um conhecimento atual e empírico, tenho acreditado cada vez mais que dá sempre para redescobrir o antigo, sem esse pré-conceito falacioso de que: é atual, é melhor; até por que eu tenho estudado uma catedral em construção desde 1882, quer dizer: tenho re-inventado o velho-novo.

No entanto, ainda tenho que pegar o macete de achar no medieval – que é o seu campo, caro – sempre uma opção. E podemos, então, seguir assim: mesclando as duas estéticas, os dois tempos, os tantos olhares que existem enraizados por aí. Nesse sentido, fui descobrir do seu roteiro, primeiramente, Belfast: cidade para a qual nunca havia dado a mínima importância em conhecer, confesso. Mas veja só, que grata surpresa! Que canto mais incrível se esconde por lá e, de fato, revela bem essa mistura que eu acabo de citar, a qual considero extremamente frutífera: o velho-novo; novo-velho; nossos olhares diferentes e complementares. Vou, então, exemplificar meu encantamento com duas fotografias bastante representativas:

o contraste entre as belezas de Belfast

o contraste entre as belezas de Belfast

Definitivamente, Belfast está no roteiro; e o castelo Helsingor e seu telhado esverdeado também. Eu ainda não tenho grandes roteiros em minha mente, mas tenho várias idéias. Definitivamente, a Abadia de Westminster está no roteiro, bem como todas as belezas de Londres e suas curiosidades – ainda vou fazer uma pesquisa mais profunda sobre os lugares interessantes para visitar por lá. No entanto, há uma exigência: Espanha. Não preciso dizer que a ida a Barcelona e, é claro, à Sagrada Família são imprescindíveis – que já não sei se será uma exigência acadêmica ou de outra natureza. Há também outro complexo arquitetônico maravilhoso que desejo visitar em terras catalãs, mas que não chega a ser uma prioridade: Valência e sua encantadora Cidade das Artes e das Ciências. 

Quanto ao alojamento, uma certeza: hostel! Não me venha com hotéis caros e sem contato inter-pessoal: o que mais me encanta nesses hotéis jovens não é tanto o preço acessível, mas a possibilidade de estar em contato com muita gente de muitos lugares diferentes. Se estamos querendo fazer uma viagem inesquecível, é preciso colocar a experiência de conhecer gente nova na lista de prioridades. Nossa, confesso que já estou animado; o próximo passo é ver preço de passagem. Tentarei me controlar.

Falei demais, cansei-me e não desejo lhe cansar também.

Com açúcar, com afeto,

S.

[Em resposta a: João/Stefano #1]

Stefano/João;Thomaz #1

Queridos,

Sou simples. Talvez simples não seja a melhor palavra, tendo em vista que o ser humano moderno gosta de se denominar complexo. Eu, no entanto, assumo minha simplicidade. Acredito, pois, que o algoritmo tenha trazido para a condição humano o gracioso ensejo de ser simples; simplório; simplista. Ainda que eu tenha um tom parnasiano nessas todas primeiras linhas, não serei capaz de mantê-lo por muito tempo – não por falta de léxico, mas por falta de vontade: não nasci para o tempo das cartas – essa é a verdade.

Mas vejam só que curioso: animo-me com o escrever ao outro; essa arte de mandar um texto tendo a certeza de que será lido e respondido. Gosto do diálogo, gosto deveras do falar que difere dessa sistemática prece que fazemos na Literatura: o falar para os tetos de bronze do infinito – as palavras ecoam, mas quem as ouve? Ainda assim, ainda com esse desejo pelo diálogo, não nasci no tempo da carta, pois não sei se agüentaria a angústia da demora pelo envelope; ou mesmo o gosto do selo nos lábios. Não sei fazer sem pressa – nada. Nem mesmo escrever. Corro, porque a velocidade faz parte do meu quadrante de subterfúgios.

Não sou, definitivamente, do tempo em que o próprio tempo era uma distância intransponível. Eu, no entanto, sou da era do e-mail; do contato fugaz; das letras que se perdem; das mensagens rápidas; dos sms e do whatsapp. Permita-me o impropério de rasgar os véus da minha linguagem rebuscada com as palavras simples do meu jargão tecnológico – mas não seria sincero fingir usar monóculo quando meus óculos de terceira dimensão se instalam em minha própria face.

Sou cibernético, queridos. E já tive crises com minha condição, já tentei negá-la, no entanto aceito. Carrego essa cruz de bits e subo o Gólgota da web com minha sina de pixels. Sou fugaz, líquido ou contemporâneo – valho-me aqui de referências aleatórias e despretensiosas de filósofos da anunciada e (quiçá) vivida Pós-Modernidade. E então, vejam só, sofro dessa acelerada e constante perda. Qual perda? Perda das minhas próprias filosofias (vãs, ainda) que faço em grupo, aos cântaros, em pequenos diálogos em chats ou mesmo em mensagens de final de ano; de final de amor; de finais em geral. Como eu odeio não ser capaz de retirar da gaveta, permitam-me o saudosismo descabido, as folhas com minha própria caligrafia – ou mesmo a de outros – em longas e longas cartas. A minha própria condição é a lança a perfurar-me o lado direito: quando quero ter-me, já não posso, pois perdi-me em algum passado e em alguns algoritmos.

Coça-me a idéia da espera e da angústia que a carta traz, no entanto chora-me a condição etérea de meus escritos, pois vejam só que apenas dedico-me à escrita em blogs – no momento. Minto: carrego ainda um caderno de poesias e outro de desenhos, mas os desenhos são ainda um treino – quem sabe um dia se tornem algo além disso mesmo – e as poesias são fragmentos meus mesmos; retirados às pressas do cotidiano e, se posso fazer uma comparação desacerbada, diria que me inspiro nos tais Vers de Circonstance de Mallarmé. Portanto, são ainda muito pouco (ou quase nada) do contato que tenho com o mundo, porque se limitam ao que posso dizer e expressar sobre minha própria condição humana; ferida; partida; intacta; ou seja lá qualquer uma das condições que carrego em mim. Perdi-me um pouco em digressões; volto e, sem mais delongas, concluo.

Digo-lhes tudo isso para esclarecer uma questão apenas: ainda que eu não tenha nascido no tempo das cartas – e nem seja capaz de revivê-lo com maestria, gostaria de dizê-los que sou do tempo do e-mail; da multimodalidade; da linguagem mais simples; da própria correria que se imprime na falta de elementos coesivos. Percebam, por exemplo, que me valho dessa incrível invenção do destinatário duplo; múltiplo – possibilitando a cópia, como se fosse possível transcorrer da mesma forma por dois momentos de escrita distintos. Esforcei-me, ainda assim, para escrever um texto na altura dos inaugurais deste sítio, no entanto preciso contar-lhes que meus jargões partirão em retirada com o passo de meu próprio cavalo chamado Sinceridade. Não esperem, portanto, de mim rebuscamento linguístico, mas sinceridade; abertura de alma; acalento; e qualquer coisa de Filosofia feita às pressas.

Feita às pressas: assim como manda o relógio desse meu tempo; nosso tempo. Aliás, tempo de quem mesmo? O passo é nosso, a velocidade com que andamos também. Eu ando rápido porque me compete, mas há quem ande em trote; em galope; em caminhada livre e despreocupada. Não sei, de fato, a melhor opção.

Mas veja só: por ser uma carta – ainda que cibernética carta mandada aos quatro cantos da Web, há um registro. Daqui um tempo, quando me debruçar outra vez sobre essas palavras, provavelmente sorrirei discreto (e por que não timidamente chorando?) ao relembrar que previ esse encontro de tempos. De fato, estamos subvertendo as regras: enquanto o passo da Internet é veloz e desenfreado, abrimos uma fenda atemporal para as palavras subsistirem. Somos anti-heróis, quem sabe; ou não somos nada. Aliás, ser nada é condição sine qua non para ser dono também de todos os sonhos do mundo. Esse é um sonho: ser eterno. E seremos; ou melhor: estamos sendo – porque a eternidade é um gerúndio. Permitam-me essas filosofias como desfecho ou como início de minha estadia neste lar.

Não sei se há respostas para essa carta, mas espero qualquer comentário que me venha de encontro; e me permita, por fim, retirar de minha escrita as letras capitais – as quais me doem nos olhos, na alma e na escrita. Gosto da linearidade da minúscula, porque não entendo nenhuma palavra como mais importante do que as outras. Mas isso é tema para outro momento, encerro-me por aqui: cansado e indo dormir; depois de gastar-me para escrever um texto digno de ser posto num envelope e atravessar um oceano, um continente, uma cidade ou, até mesmo, apenas algumas telas de computador.

Com açúcar, com afeto,

S.