João/Stefano #10

Copenhague, 01/10/2013

Querido Stefano,

Sua última carta chegou carregada não só da melancolia regular do exílio, mas também de uma certa urgência, um clamor por socorro. Por isso, achei adequado te mandar alguns recados por outros meios antes de responder por aqui (porque estas respostas requerem uma certa elaboração e um certo tempo). Fizemos bem em nos comunicar dessa forma, porque eu também estou cheio das mesmas perguntas. Conversando assim, acabamos por descobrir algumas coisas juntos, que vou tentar recapitular e desenvolver um pouco aqui.

A verdade é que eu gostaria muito de te dar as respostas certas a esses dilemas. Mas eu não as tenho para mim mesmo. O que posso te oferecer são algumas perguntas. Nós sabemos o que as perguntas fazem conosco. Posso me ver, e te ver, passando a odiá-las, a desejar que elas não existissem. Mas elas estão aí e nós não podemos fazer muita coisa se la vie est absurde.

O que segue é a minha tentativa de ordená-las aqui numa sequência compreensível.

– A nossa entrada na faculdade do Brasil poderia também ser vista como um momento de abandono, de falência social. O que fez com que ela fosse o contrário disso? O que os amigos daqui têm de diferente (pior?) do que aqueles que nos eram desconhecidos quase quatro anos atrás?

– O que, de tudo aquilo que me impede de me sentir em casa aqui, é contornável?

– A (nossa) espiritualidade brota de algum lugar em específico ou ela simplesmente existe, independentemente da nossa vontade, reconhecimento ou consciência?

– Quando eu me (des)encanto com alguma coisa, quem ou o que despertou esse (des)encanto?

– (Essa partiu de você) será que algum dia resolveremos essas coisas?

Talvez eu tenha uma facilidade para lidar com a desesperadora inquietação que essas questões nos provocam porque eu sempre fui um ser falido socialmente. Durante os primeiros vinte anos da minha vida, eu não quis fazer nada a respeito da angústia de tentar conciliar meu bom senso e minhas incertezas imateriais com um ambiente evangélico bastante peculiar e crescentemente fundamentalista. Quando a conciliação me pareceu impossível e indigna, eu resolvi abandonar a minha igreja. Passados alguns meses, eu e meus amigos de infância percebemos, silenciosamente, que vai ser quase impossível evitar nossa alienação e estranhamento mútuos.

Minha despedida poderia ser a minha carta de condenação à solitária.

Queria te contar um pouco sobre uma das figuras que hoje mais me inspiram. Meu pai cresceu num ambiente incomparavelmente mais opressivo que o meu: e ainda pior, com escassos recursos materiais. Mas ele tinha um sonho e uma boa professora de primário. Contra o sistema de educação, contra muito bullying e contra as dificuldades e a competição que alguém que vem de uma família pobre do interior sempre tem que enfrentar, meu pai conseguiu ser forte e ir bastante longe na carreira com que sonhava.

E então, por causa de um problema no coração, ele teve que desistir de tudo.

Eu nunca entendi, mas sempre admirei, o fato de meu pai ter passado pelo menos os cinco anos seguintes sem algo estável em que se agarrar. E ainda assim ter conseguido recolher os cacos, recomeçar e dar uma existência digna a mim e aos meus irmãos.

Isso é um pouco da história do meu pai. Não posso esquecer da minha mãe, que nasceu numa família muito grande, e também com poucos recursos, e perdeu o pai com cinco anos. Às vezes, junto com as muitas irmãs, ela lembra do tempo em que tinham que pular refeições para conseguir levar algum dinheiro para casa.

Esta é uma carta bastante íntima e estou com medo de não fazer justiça às histórias e às pessoas sobre as quais estou falando. Eu morei mais de vinte anos com o meu pai e e com a minha mãe me acostumei com a presença deles sob o mesmo teto. Foi só quando vim pra cá e fiquei diante da minha própria sub-vida, da minha incapacidade de viver, que fui reler mentalmente as histórias que escrevi acima. Sob uma certa luz, podem parecer histórias tediosas. Mas a verdade é que eu sempre vivi na mesma casa que as duas pessoas mais incríveis do mundo.

Ou melhor, quatro.

Eu vi meu irmãozinho crescer diante dos meus olhos. Quando as coisas acontecem assim, temos um curso extensivo de como enxergar a preciosidade daquela vida e daquela pessoa. Nós nunca perdemos a oportunidade de dizer um ao outro que nos amamos; mas nem precisaríamos, porque já está no olhar. Eu sempre achei que minha relação com minha irmã mais velha era diferente, mais complicada, mais cheia de atritos e de pontos cegos.

Foi na tarde em que visitei os sítios arqueológicos que percebi que não era bem assim. Na volta a Copenhague, de súbito e aparentemente sem motivo algum, encontrei-me chorando de saudade da minha irmã. Só da minha irmã. E não só do tempo em que brincávamos nas nossas casinhas pequenas em Itu e Mogi-Guaçu, infinitas e belas como palácios reais, mas também de quando tínhamos que dividir o carro um mês atrás e de tudo que aconteceu no meio. Foi forte, verdadeiro e inesperado, e eu tive que esconder o rosto porque não conseguiria explicar o que estava acontecendo a quem perguntasse.

Tudo isso poderia transformar meus dias em melancolia e saudade, mas não tem sido assim. Copenhague sempre vai ter um lugar especial no meu coração, pois foi o lugar em que eu percebi que as minhas ideias anteriores sobre onde o valor do mundo reside sempre tinham sido estimativas pessimistas. Aqui, sozinho na companhia da minha própria mediocridade, vi que por toda a minha vida talvez não tenha sido metade do ser humano que cada um dos meus familiares é; mas que esse cenário não vai melhorar se eu não ajudar a mim mesmo.

Agora que já fui tão longe, não sei por que não dizer tudo. Eu acho que essa é a maior conquista que alcancei no último mês, quiçá em toda a viagem: aprender a enxergar a vida e a história nos olhos de cada um. Eu ainda estou esperando a resposta da minha permissão de residência, e passo os dias assombrado pela possibilidade um carimbo de rejeição na caixa de correio. Mas nem mesmo esse acontecimento eu poderia chamar de fracasso. Porque agora, diferentemente do joão de julho, este que vos fala não acredita mais em usar os reveses para justificar apatia e desânimo, mas sim em juntar os cacos e seguir adiante.

É irônico que a primeira carta meio auto-ajuda do blog parta de mim, o dono da vida mais patética dentre nós três. Eu poderia tentar fazer uma versão oposta da sua lista de contrastes: aqui eu saio no fim de semana, aqui eu olho nos olhos das pessoas quando converso com elas, e ouço de verdade suas histórias, mas acho que a lista pararia aí. Porque se você vier me visitar, acho que você vai ter a impressão de que encontrou o mesmo João Guilherme de antes, só um pouco mais resistente ao frio.

Eu também, como sempre, não sei fazer piada, me sinto meio estranho no meio do grupo e falo coisas óbvias e sem graça. Mas eu tive paciência, alguns outros tiveram paciência, e eu acabei fazendo amigos. E no final das contas, existia sim algo que valia a pena em mim, nas pessoas e na cidade. Eu não tenho nada a ensinar a alguém como você. Só acho, e aposto às cegas, que ainda tem muita coisa passando na frente dos seus olhos em Paris que você não está se permitindo, ou arriscando, enxergar. Talvez o problema não seja ir de um lugar pro outro ou fazer ou dizer a coisa certa mas sim acertar o foco.

Sinceramente como quase nunca antes,

João G.

P.S.: Gostei muito do cartão postal, você bem sabe. Já pensou bem no que me disse?

Em resposta a: Stefano/João #9

Stefano/João #9

Sorbonne, 24.09.13

João,

Eu me questiono também o motivo de ter saído. Curiosamente, quando vim, parecia bastante claro, mas o lento correr dos dias tem me mostrado que isso é exílio e não intercâmbio. Talvez eu ande meio triste e isso impregne na minha roupa e na minha escrita de uma forma muito além do que eu possa prever, dado mesmo a minha inclinação para o exagero, o sentimentalismo e o drama. Mas reitero: isso é exílio. Não necessariamente político e doloroso como os ocorridos em épocas de guerra e de ditadura, mas não é definitivamente o oposto. Não sei, mas essa cidade não me encanta. É claro que, por fotos, me encantava e, obviamente, existe deslumbramento nos pontos turísticos. É claro. Mas não há encantamento. E parece-me curioso isso: não estar apaixonado no começo e passar pelo processo de desapego e saudade ao longo dos meses – até o ponto de suplicar a volta para casa.

Não chego ainda a suplicar a volta, mas olho para as pessoas que passam ao meu redor em bandos e penso: eu não sou parte de tudo isso. Eu, por outro lado, sinto-me dentro de uma esfera nauseante e claustrofóbica em que existe espaço para mim – e somente. Sinto a despatriação de mim mesmo ocorrendo lentamente. Aqui, meu caro, eu sou triste. Eu não falo alto, eu não sorrio fácil e nem sequer sei fazer piada. Aqui eu sou tímido, almoço sozinho e as poucas vezes que tenho alguém comigo geralmente não sei ser menos gentil que um livro de idiomas ensina e mais espontâneo do que uma fita cassete pronta a recomeçar o curso intensivo de verão. Mas isso me assombra: aqui, eu sou triste. Eu tenho olheiras, como pouco, falo pouco e uso fones de ouvido. Eu nunca usei fones de ouvido como forma de espantar pessoas, mas aqui eu uso. Aqui eu ando constantemente sozinho, ouvindo estranhos e desenhando rostos no metrô. Escrevo pouco e sinto saudade o tempo todo – a ponto de chorar em museu.

Um amigo meu, que aqui mora faz anos, me perguntou se Paris já havia sugado as minhas energias. Eu achei curioso a princípio. Respondi (e um pouco mentindo) que Paris ainda me fazia bem. Ele me disse algo, então, que agora entendo: é melhor que você seja turista sempre, que não more no centro e só passe por Paris todos os dias. É melhor que sua casa seja em outro lugar, talvez assim você tenha uma impressão menos angustiante dessa cidade. Paris é apertada, quieta, triste, cinza. Paris é linda também, mas acho curioso que as únicas cores que eu veja estejam nas calças compridas, nos macarons e nas flores dos jardins. O amor se esfriará no coração de muitos, penso muito e constantemente. Paris é, de fato, uma cidade para ser contemplada, visitada, deixada. A permanência fará, hora ou outra, na feição os lábios tristes de alguém que lê e apenas lê nos metrôs. Ninguém se apaixona quando novas pessoas entram no vagão. Contempla-se apenas.

E em mais um dia de respostas cinzas, recebi pelo correio seu cartão postal. No meio do meu silêncio reiterado, fiquei brincando de olhar o céu pelo buraco do papel. E percebi com espanto: por trás de tudo,o por-do-sol ainda não é cinza. O dedo da última carta, pra mim, aponta para um lugar em que o cinza é só uma lembrança de um exílio. Ou de um Exílio. É, aqui eu sou triste.

Com açúcar, com afeto,
S.

João/Stefano #8

Caro Stefano,

Eu vejo um gesto que sugere um sentido. A polissemia é intencional. A mão poderia estar apontando para o Norte, aonde nós viemos, ou até para mim, embora ela esteja um pouco deslocada da minha direção. Não importa. Quando as pessoas olham para mim, eu tenho a impressão de que elas estão olhando um pouco na direção errada mesmo. Eu não posso ver para onde ela aponta, mas posso imaginar um caminho que segue nesse sentido e um sentido para esse caminho.

Não sei quanto a você, mas eu não sei exatamente onde estou e não sei qual é o sentido da minha jornada. Thomaz diz que quando eu voltar saberei porque saí. E isso é o que eu também vejo na sua foto: a criação. Em vez de simplesmente seguir na direção sugerida, fugindo do gesto que a indica, podemos estender nossa própria mão até ele e reencenar o violento e chocante momento da nossa criação. Pois esse é o desafio de nossa expedição: não ser apenas turista num país simpático e sempre sorridente mas encerrar-se na forja e recriar-se de fato.

É por isso que não acredito que o impulso expedicionário seja sempre egoísta. Ele é mais como uma pulsão de morte, uma tentativa de extrair de nós mesmos uma energia que permaneceria potencial se alguma coisa não fosse destruída. Não que nós saibamos exatamente o que fazer com ela, embora tenhamos esperança de que ela vá além de nós mesmos. Mas tem vezes que estocá-la com cautela simplesmente não é suficiente. Nesses momentos, só existe a mão, a mão que aponta um sentido desconhecido, ou que aponta para um joão um pouco deslocado daqui. É só uma sugestão e nenhuma garantia, mas isso não importa.

O que importa é ir.

Com carinho,

João G.

P.S.: Não se preocupe com o tempo de resposta. Eu só queria garantir que você visse a carta.

Em resposta a: Stefano/João #7

Stefano/João #7

(ou “Sou ruim com encontros marcados e por isso demorei tanto para responder”)

Cachan, 6 de setembro de 2013.

Jean,

Sua carta me intriga, mas eu gosto dela, do fato de ter somente uma foto e ser, assim, um relato de uma vida toda. Vida talvez sua uma hipérbole descabida, mas de um recomeço de tempo pelo qual passamos. Já bem acomodados, aqui estamos em solo europeu. Curioso que a nossa experimentação dos lugares é algo completamente novo, porém a existência dos signos é completamente superior à nossa existência. Por isso, eu retomo a foto: a estátua é uma existência por si própria, objetivada no mundo, mas nós a possuímos. Nós é um outro impropério, quem a possui é você, mas a atitude de descoberta compete a ambos – até o idioma é outra dessas jornadas ardilosas pela qual você está se aventurando.

Somos parte das grandes navegações modernas que, na verdade, vão em busca de conhecimento, e não mais necessariamente de ouro e especiarias. Quer dizer, reflito agora que toda expedição tem um caráter de exploração e esgotamento do outro: vou até uma terra distante parasitar o conhecimento, a riqueza, a mão-de-obra, as praias, os monumentos, os museus. Um desejo imperialista que se mantém, talvez, que nos constitui – quem sabe. Lembra que apontaram a minha resistência em moralizar na defesa de tese? Pois bem, cá estou eu transformando em hipótese o que poderia ser conjectura.

Mas, de todo e qualquer modo, a estátua aponta para um dos pontos cardeais altivas. A despeito da orientação ser sempre o norte, penso que ir já é um aventurar-se bastante grande. Ir para o norte é o que as caravelas faziam, hoje nós vamos. Percorremos. Ganhamos território e expandimos. Cada um para um ponto diferente, na distância que impõe ao coração a necessidade de unir. Acho que é isso, porque a estátua é de níquel. E metais não sentem frio, nem medo, os sentimentos que um bom navegador não se deve permitir sentir. A despeito disso, nós somos humanos, graças a Deus – com a possibilidade de ter raízes e sentir saudades, apesar de gelidamente apontarmos.

Deixo-lhe a réplica do desafio fotográfico como pergunta.

20130906-131955.jpg

O que é que vês?

Com açúcar, com afeto,
S.

Em resposta a: João/Stefano #6

João/Stefano #5

Querido Stefano,

Pelo que me lembro, a falácia de apelo ao antigo consiste em (ai, as chatices das definições) dizer que uma ideia defendida por uma fonte antiga, ou mais antiga do que outra, é boa, ou melhor que outra, por esse motivo. Não pense isso de mim. Isto, em relação ao pensamento medieval, de forma alguma eu sustento. Quero que fique claro: não há razão lógica alguma para que eu me sinta atraído pela Idade Média. O que posso dizer é que algo na visão de mundo (ou devo dizer no mapa do universo?) medieval responde a alguma vocação profunda em mim que me escapa à consciência. A lógica está a léguas desse mundo.

Vou aproveitar que você tocou no assunto para expor algumas das minhas ideias sobre esse revival da Lógica Formal aqui. Peço desculpas se me alongar no assunto, mas é que já estou vendo algumas repercussões perigosas dessa tendência e gostaria de me manifestar sobre elas. Esta também não é a reação a uma crítica (eu entendi o que você quis dizer); apenas a minha perspectiva, que quero discutir com você, sobre um fenômeno.

Existe uma teoria, a qual não aceito, que propõe um certo comportamento humano como uma constante universal, às vezes até como um instinto biológico. Esse comportamento seria o costume de argumentar para vencer um debate em vez de para refletir de maneira frutífera sobre uma questão. Esse costume é típico de umas certas pessoas que estudaram um pouco — às vezes bem pouco — de lógica formal e superestimam seu poder, ou simplesmente não entendem seu propósito. Mas não cito a teoria só por isso. Cito porque a teoria em si é um exemplo do que esses pseudo-logicistas (doravante antalógicos) estão fazendo: emprestando o estatuto de critério de verdade a uma simples ferramenta de pensamento.

Os antalógicos não usam a lógica como uma ferramenta de crítica ou de autocrítica. Não, meu caro amigo, a intenção deles é bem clara. Quando um antalógico faz um post em seu blog mostrando falácias no célebre discurso de Caetano Veloso intitulado “Você é burro, cara” com o objetivo de comprovar a irracionalidade dos “esquerdistas médios”, o que ele está querendo dizer é: eu sei mais de lógica do que você, portanto eu estou sempre certo. E nisto está cometendo quatrocentas mil falácias de uma vez (um antalógico provavelmente apontaria que na verdade é só uma falácia, porque antalógicos também costumam se esquecer de que a linguagem é quatrocentas mil vezes mais significativa do que a lógica).

Durante as férias, eu ouvi um curso de Oxford de lógica formal em podcast (não pergunte). Foi um bom curso, me ensinou o que eu queria. O único problema do curso é o título: Critical reasoning for beginners. Quer dizer que para ser capaz de pensar criticamente eu tenho que saber lógica formal? Mas que disparate! Muitos adolescentes e até crianças são capazes de escrever longos textos, limpos de falácias formais e informais, valendo-se apenas do senso comum que adquiriram em fóruns de Internet. Por outro lado, Olavo de Carvalho é um dos grandes especialistas em lógica formal no Brasil. Imagine.

Em tempo: a lógica dispõe de meios e princípios para que ela mesma possa brilhar sem o sacrifício do bom senso. E os bons logicistas de verdade fazem uso dessas ferramentas. Mas eu dificilmente acreditaria que o antalogicismo provém de uma ingênua falta de prática com argumentos reais em discussões genuínas. Ninguém se faz cego para com o bom senso e supervaloriza a forma de pensamento que lhe convém sem um certo interesse. Um antalógico está disposto a prejudicar a reputação da própria lógica como disciplina para decretar que as suas palavras é que são verdadeiras. Isso tem nome: egoísmo.

Por isso, acho muito válido, Stefano, o que você disse em defesa das falácias. A vida precisa ir além da lógica: às vezes a lógica é uma prisão. Acho que ainda vou propor, como professor de redação, o exercício de analisar uma daquelas discussões cabeludas de fórum dos tempos do Orkut. Há muito mais que se aprender ali, ao menos para alunos de ensino médio, sobre textos, argumentos e estruturas de raciocínio do que em categorias abstratas de lógica.

O que você acha?

Cavalarias e hipertextos,

João G.

P.S.: Não deu tempo de falar sobre meus estudos medievais. Em suma: estão em curva ascendente, pode ter certeza.

[Em resposta a: Stefano/João #4]

Stefano/João #4

Cavaleiro João,

Começo a gostar da transgressão do vocativo – ou quem sabe de sua multiplicidade e/ou liquidez, conceitos pelos quais tenho tamanho apreço, devo confessar. Outra confissão vai de encontro à sua análise: poeta sou e, de fato, é minha sina tentar o tempo todo extrapolar os sentidos prévios. Sobre essa questão, numa analogia completamente aleatória que me surgiu, relembro de um saudoso professor (mas não me pergunte o nome, pois não me lembro) do IEL que, dando aulas de Gramática, extrapolava sempre contextos possíveis para que os ditos períodos agramaticais adquirissem sentido. Sou, portanto, um desses desbravadores das possibilidades linguísticas – rio-me com a ideia de chamar-me Borba Gato das Letras e ter um monumento mal feito em São Paulo qualquer tempo depois de minha morte. Borba Gato: vejo nas palavras sempre uma floresta densa para ser desvirginada.

E quanto às letras capitais, uma última observação: tenho gostado delas por ora; fazem parte desse mise en scène que construo em minha mente ao escrever minhas cartas. Outro dia mesmo vi em um blog uma extrapolação de como seria Shakespeare nos dias de hoje – um tanto quanto seguidor dessa tendência hipster, óculos Wayfer, a cara de quem frequenta sebos e olhar de quem procura futricar na realidade mais do que deveria, enquanto vislumbra o mundo pela janela do Starbucks. Eis Shakespeare moderno e, por que não?, quem me imagino ser quando escrevo, ainda que pelo computador, uma carta. Essa atividade anacrônica e ímpar que temos desenvolvido.

Mas enfim, dessa vez me alonguei em dois parágrafos meta-linguísticos {esse hífen foi colocado automaticamente pelo corretor que se diz atualizado pelo Novo Acordo Ortográfico. Confio, por isso, nele e mantenho}, se continuar nessa toada logo escreverei um tratado sobre Linguagem e não uma carta pessoal. Aliás, como ri-se por aqui? Risos, assim por extenso? Risos. Façamos uma distinção, então, entre Breves, Prolongados e Gargalhadas. Gargalhadas Descontroladas valem apenas em casos extremos em que o humor for atingido enquanto êxtase. Por exemplo, agora, escrevendo isso me acometo de um mental e contínuo Riso Prolongado. E perceba como essa insistência humana em categorizar se revela sempre e desnecessariamente: já pude inventar três formas de rir-se na carta, com nomenclatura e definição por diferenciação.

Chega de Linguagem, deixo-me deixe-me falar da vida.

De fato, você ama o que estuda. Pude perceber nitidamente isso com a sua última carta – e mesmo porque as palavras pareciam ter sido mergulhadas em um licor doce e inebriante no processo de escrita. Pela primeira vez, caro, entendi que você ama a cavalaria, as armaduras, os bosques, as flechas dos bretões. E ainda que certos juristas (ou outros senhores da retórica) apontariam para você seus dedos e seus argumentos de que, de fato, sua declaração não passa de uma falácia de apelo ao antigo, não importa.

Explico-me, primeiro, porque tocar no assunto do raciocínio falacioso. Nas últimas aulas que tenho assistido na escola em que trabalho, as professoras de Português abordaram com os alunos essa temática e sua problemática para o gênero argumentativo escrito ao qual estão expostos, por causa do Vestibular. De fato, falácias são nocivas para o discurso acadêmico e fragilizantes para as colunas resistentes da Lógica – se pensarmos num mundo objetivado, em que só são válidos discursos pautados na argumentação mais enrijecida o possível.

No entanto, tenho me questionado desde então, se não é da própria falácia que vem a oportunidade de encontrar a certeza. A falácia gera uma dúvida e uma possibilidade, pois se configura como essa quebra da Lógica que estabiliza os meios e os inteiros em harmonia no universo. A falácia, não a mentira, é importante para a condição humana – para que não sejamos máquinas preenchidas de zeros e de uns. Ainda que sua afirmação seja uma argumentação falaciosa, {veja bem que isso não é uma crítica, porque o mundo é constituído assim} é uma das mais bonitas e reveladoras a seu respeito que já ouvi.

Você precisa do Quixote para ser João, entendo por fim. O que está em jogo, pois, não é construir uma argumentação para passar no Vestibular ou convencer alguém de que se deve ou não diminuir a maioridade penal; aqui falamos de identidade, de descoberta, de eixos, de permanências, de falhas e de entregas. Aqui falamos da vida e, ora, não há mal nenhum esquecer a Lógica por uns instantes. Prefiro até que não venham racionalizar e biologizar certas peculiaridades que competem ao campo obtuso das formulações do que, na Idade Média, chamariam Alma.

A condição humana depende das generalizações apressadas e dos raciocínios non sequitur. Precisa do apelo ao novo, ao velho, à Idade Média. Precisa de superstições, de fé, de milagres e explicações que não necessariamente sejam coerentes. Tudo isso constitui o contrapeso da balança que nos impede de cair direto e reto no cibernético apocalipse em que nos tornamos máquinas. E apenas máquinas.

Confesso que a arma bélica que me atinge não vem zunindo do meio de um bosque impenetrável – ainda que me tenha chamado Borba Gato a pouco tempo. Também não estou preso no Templo de Atenas, mas veja só: nem por isso todas as essas questões deixam de me consolidar. Compreender a Hipermodernidade não é tão necessário para estar vivo e interagir interpessoalmente, mas veja que ter passado pela Idade Média é condição inalienável para o momento presente ao qual chegamos.

De fato, somos frutos das cavalarias – em alguma medida, em algum tempo, de alguma forma. Confesso que eu nunca fui fã de História no Ensino Médio por nunca me entender dentro dela. Hoje me entendo, ainda que seja tarde para voltar ao aprendizado juvenil, hoje me entendo parte do tempo passado. Consequência dele e formador de um próximo – que também nos chamará de História.

Aliás, como vão seus estudos sobre as questões medievais? Frutíferos?

Com açúcar bretão e afeto cosmopolita,

S.

[Em resposta a: João/Stefano #3]

João/Stefano #3

Metalinguístico amigo Stefano,

Sabia que você entraria em grande (e rebuscado) estilo na conversação das cartas. Se você se sentiu pouco à vontade naquele registro, você só provou que sabe se sair com desenvoltura até numa variedade pouco familiar. A impressão que eu tenho é que você, sendo poeta, só consegue aceitar o valor mais estabelecido — digamos — das palavas após muito questionamento, e com muitas reservas.

Talvez, é claro, eu esteja completamente enganado.

Mas é fato que eu digo “querido” menos pela fórmula do que pelo significado da palavra “querido”. Fórmulas de saudação são o que menos gosto em cartas. Se sinto que outro adjetivo ou advérbio cabe melhor na situação, não hesito em modificá-lo.

E para encerrar este assunto, gostei muito das suas duas cartas, também estou contente com o hibridismo e não acho que você deva se preocupar com as maiúsculas se isso te incomoda. A carta, não esqueçamos, suporta a quebra de fronteiras de elementos genéricos como ninguém.

De volta à viagem: aceito a proposta. Não sei como, mas já sei onde e quando: Europa, segundo semestre. A gente merece.

Essa discussão sobre o velho e o novo comporta muito papo. Sinto que você (que já é realmente meu guia na Europa) e alguns outros amigos são para mim como guias do contemporâneo: por mim mesmo, eu acho que não saberia qual é a do século XXI. Note bem: não é que eu acredite que nosso tempo seja inferior de alguma forma aos anteriores. Eu sempre quis e quero compreender o tempo em que vivemos, me encontrar aqui, aprender a amá-lo, descobrir de que forma posso ser relevante e tal. Mas acho que não consigo fazê-lo espontaneamente, sem um certo senso de dever.

A satisfação que encontro em descobrir e redescobrir a Idade Média, por sua vez, como qualquer tipo de prazer, tem o seu lado de capricho, inexplicável, inconsciente. Vou tentar falar sobre o lado menos maluco.

Você já deve ter reparado no fenômeno do crescente número de entusiastas da cultura indiana ao nosso redor, muitas vezes adolescentes. O interesse nas formas de pensamento dessa civilização oriental é uma constante na vida do Ocidente, crescendo junto com a globalização. Muito disso, é claro, tem a ver com o gosto mesquinho pelo exótico, a autoafirmativa e enciclopédica compilação de estereótipos. Mas acredito que há um outro motivo mais profundo para essa importante redescoberta. Eu acredito que uma boa parte desses entusiastas percebem que as perspectivas mais convencionais ou mais familiares pelas quais eles aprenderam a ver o mundo não são suficientes para dar conta de sua (crescente) diversidade. Quando descobrem que existe uma outra perspectiva frente à realidade, impressionante, desenvolvida, capaz de fazer frente às convenções ocidentais modernas e, principalmente, que responde de imediato aos seus anseios mais profundos, sucedem momentos de epifania como este aqui:

Try to realise it’s all within yourself
No one else can make you change,
And to see you’re really only very small
And life flows on within you
And without you
.

O que acontece entre mim e a Idade Média é isso, com um detalhe a mais: em alguns sentidos (certamente em alguns não), os medievais são mais nós do que os indianos. Se eu sou capaz de detalhar esses “sentidos”, devo fazê-lo em outras muitas cartas. Mas acredito que aqui esteja bem próximo à fronteira da intuição inconsciente.

O que posso dizer é que Roma e a Grécia também são mais nós num sentido bem parecido. Com seu desenvolvimento militar, político e retórico, Roma é com certeza uma empolgante forma de nos enxergarmos em nossos antepassados. A Grécia também, com seus ideais de beleza e racionalidade, sua arte — mas esses mundos me parecem próximos, alcançáveis demais. É fácil demais, talvez, ver como nós pensamos muito como os gregos e como os romanos. Pensar como um medieval nos convida bem mais a uma experiência imaginativa. Já vi muitos adjetivos invejáveis serem usados em apologias às literaturas das duas grandes civilizações clássicas. Mas quando se fala de Idade Média, a descrição costuma ser única e característica: a literatura medieval é fascinante.

Há uma grande quantidade de pessoas que são atingidas de forma bastante inesperada por uma atração pungente pelos modos de pensamento do passado. Alguns estão caminhando tranquilamente quando se veem aprisionados sob um templo grego em ruínas. Outros, num passeio despreocupado pela praça da cidade, são repentinamente soterrados nas cinzas do Vesúvio. Eu, que vagara muito tempo sem rumo, num belo dia estaquei de súbito: de uma floresta escura, uma seta de arco-longo bretão vinha zunindo em direção ao meu peito.

Sinceramente,

João G.

[Em resposta a: Stefano/João #2]

Stefano/João #2

Querido João,

Ainda tenho problema com o vocativo: me soa amargo. Não, não é amargo; talvez ocre. Me soa estranho, como uma polpa meio verde de fruta: o gosto que deveria ter está lá, mas nem por isso é saboroso. Não gosto, ainda que goste – no limiar paradoxal entre as duas faces dessa moeda, chamada por Freud, de Amor-Ódio. No entanto, é cabível de discussão, talvez você me convença do uso do “querido” ou mesmo do “caro” ou de qualquer outra dessa estirpe, porque usar um “mano” ou “brother” ou uma dessas categorias mais tidas como recentes parece-me um impropério. E eis-me cá de novo no maneirismo, no limiar entre a carta e o e-mail; essa é uma condição que talvez perca, mas por enquanto o hibridismo me soa agradável. Quanto a você, não sei, porém eu imagino-me com uma pena cibernética quando escrevo. Enfim, tudo isso para dizer que o “querido” ou mesmo o “caro” me soam distantes: no tempo linguístico e no afetivo também. De qualquer forma, feito um comentário metalinguístico que me incrivelmente me encanta em inícios, vamos à resposta – que é a parte interessante de tudo isso.

Dá-me um frio na barriga pensar em intercâmbio – ainda que por enquanto seja só o seu, mas eu tenho uma verdadeira inclinação pelo gosto de viajar. E mais do que isso: o gosto dos preparativos; acredito, assim, que seja essa a única espera que eu suporte carregar. Quantas vezes já não me peguei fazendo contagens regressivas para meros passeios para terras não tão distantes quanto o reino da Dinamarca. Ou mesmo, tão distante quanto o continente europeu, posto que nossos ensejos não se limitam à terra da corte de Hamlet. Nem que os sonhos de longo prazo – que durariam longos meses – caiam por terra, penso que não devemos por nada perder a vontade de fazer um outro, ainda que curto, para suprir a ânsia pelo solo europeu. Portanto, firmo nessa carta um pacto: de uma forma ou outra, fomentados pelo governo, pelo nosso próprio bolso ou por recitar poemas no metrô ao som de uma sanfona rangendo, vamos passar um tempo no escapismo intercontinental. O que pensa sobre a proposta?

E quanto ao roteiro, me encanta. De fato, eu fico feliz que você seja o contra-peso de minha balança – e já me explico. Gosto dos roteiros banhados ao moderno, seja na Arquitetura ou na Arte, por isso poucas são as vezes em que me lembro de colocar nas minhas andanças a visita a castelos, túmulos ou pequenos recantos históricos que guardam, é claro, mil encantos. É piegas falar mil encantos? Sim, é; mas tenho acreditado por hora que é a mais pura verdade. Sobre isso, uma digressão: nas minhas novas andanças pelo próprio centro (histórico?) de Campinas tenho encontrado pequenos cantos tão bonitos e agradáveis de se contemplar e frequentar. Sejam mosaicos em paredes de revés e onduladas; sejam fachadas conservadas e restauradas. E mil encantos que antes mesmo me passavam despercebidos. Posto isso, que é um conhecimento atual e empírico, tenho acreditado cada vez mais que dá sempre para redescobrir o antigo, sem esse pré-conceito falacioso de que: é atual, é melhor; até por que eu tenho estudado uma catedral em construção desde 1882, quer dizer: tenho re-inventado o velho-novo.

No entanto, ainda tenho que pegar o macete de achar no medieval – que é o seu campo, caro – sempre uma opção. E podemos, então, seguir assim: mesclando as duas estéticas, os dois tempos, os tantos olhares que existem enraizados por aí. Nesse sentido, fui descobrir do seu roteiro, primeiramente, Belfast: cidade para a qual nunca havia dado a mínima importância em conhecer, confesso. Mas veja só, que grata surpresa! Que canto mais incrível se esconde por lá e, de fato, revela bem essa mistura que eu acabo de citar, a qual considero extremamente frutífera: o velho-novo; novo-velho; nossos olhares diferentes e complementares. Vou, então, exemplificar meu encantamento com duas fotografias bastante representativas:

o contraste entre as belezas de Belfast

o contraste entre as belezas de Belfast

Definitivamente, Belfast está no roteiro; e o castelo Helsingor e seu telhado esverdeado também. Eu ainda não tenho grandes roteiros em minha mente, mas tenho várias idéias. Definitivamente, a Abadia de Westminster está no roteiro, bem como todas as belezas de Londres e suas curiosidades – ainda vou fazer uma pesquisa mais profunda sobre os lugares interessantes para visitar por lá. No entanto, há uma exigência: Espanha. Não preciso dizer que a ida a Barcelona e, é claro, à Sagrada Família são imprescindíveis – que já não sei se será uma exigência acadêmica ou de outra natureza. Há também outro complexo arquitetônico maravilhoso que desejo visitar em terras catalãs, mas que não chega a ser uma prioridade: Valência e sua encantadora Cidade das Artes e das Ciências. 

Quanto ao alojamento, uma certeza: hostel! Não me venha com hotéis caros e sem contato inter-pessoal: o que mais me encanta nesses hotéis jovens não é tanto o preço acessível, mas a possibilidade de estar em contato com muita gente de muitos lugares diferentes. Se estamos querendo fazer uma viagem inesquecível, é preciso colocar a experiência de conhecer gente nova na lista de prioridades. Nossa, confesso que já estou animado; o próximo passo é ver preço de passagem. Tentarei me controlar.

Falei demais, cansei-me e não desejo lhe cansar também.

Com açúcar, com afeto,

S.

[Em resposta a: João/Stefano #1]

Stefano/João;Thomaz #1

Queridos,

Sou simples. Talvez simples não seja a melhor palavra, tendo em vista que o ser humano moderno gosta de se denominar complexo. Eu, no entanto, assumo minha simplicidade. Acredito, pois, que o algoritmo tenha trazido para a condição humano o gracioso ensejo de ser simples; simplório; simplista. Ainda que eu tenha um tom parnasiano nessas todas primeiras linhas, não serei capaz de mantê-lo por muito tempo – não por falta de léxico, mas por falta de vontade: não nasci para o tempo das cartas – essa é a verdade.

Mas vejam só que curioso: animo-me com o escrever ao outro; essa arte de mandar um texto tendo a certeza de que será lido e respondido. Gosto do diálogo, gosto deveras do falar que difere dessa sistemática prece que fazemos na Literatura: o falar para os tetos de bronze do infinito – as palavras ecoam, mas quem as ouve? Ainda assim, ainda com esse desejo pelo diálogo, não nasci no tempo da carta, pois não sei se agüentaria a angústia da demora pelo envelope; ou mesmo o gosto do selo nos lábios. Não sei fazer sem pressa – nada. Nem mesmo escrever. Corro, porque a velocidade faz parte do meu quadrante de subterfúgios.

Não sou, definitivamente, do tempo em que o próprio tempo era uma distância intransponível. Eu, no entanto, sou da era do e-mail; do contato fugaz; das letras que se perdem; das mensagens rápidas; dos sms e do whatsapp. Permita-me o impropério de rasgar os véus da minha linguagem rebuscada com as palavras simples do meu jargão tecnológico – mas não seria sincero fingir usar monóculo quando meus óculos de terceira dimensão se instalam em minha própria face.

Sou cibernético, queridos. E já tive crises com minha condição, já tentei negá-la, no entanto aceito. Carrego essa cruz de bits e subo o Gólgota da web com minha sina de pixels. Sou fugaz, líquido ou contemporâneo – valho-me aqui de referências aleatórias e despretensiosas de filósofos da anunciada e (quiçá) vivida Pós-Modernidade. E então, vejam só, sofro dessa acelerada e constante perda. Qual perda? Perda das minhas próprias filosofias (vãs, ainda) que faço em grupo, aos cântaros, em pequenos diálogos em chats ou mesmo em mensagens de final de ano; de final de amor; de finais em geral. Como eu odeio não ser capaz de retirar da gaveta, permitam-me o saudosismo descabido, as folhas com minha própria caligrafia – ou mesmo a de outros – em longas e longas cartas. A minha própria condição é a lança a perfurar-me o lado direito: quando quero ter-me, já não posso, pois perdi-me em algum passado e em alguns algoritmos.

Coça-me a idéia da espera e da angústia que a carta traz, no entanto chora-me a condição etérea de meus escritos, pois vejam só que apenas dedico-me à escrita em blogs – no momento. Minto: carrego ainda um caderno de poesias e outro de desenhos, mas os desenhos são ainda um treino – quem sabe um dia se tornem algo além disso mesmo – e as poesias são fragmentos meus mesmos; retirados às pressas do cotidiano e, se posso fazer uma comparação desacerbada, diria que me inspiro nos tais Vers de Circonstance de Mallarmé. Portanto, são ainda muito pouco (ou quase nada) do contato que tenho com o mundo, porque se limitam ao que posso dizer e expressar sobre minha própria condição humana; ferida; partida; intacta; ou seja lá qualquer uma das condições que carrego em mim. Perdi-me um pouco em digressões; volto e, sem mais delongas, concluo.

Digo-lhes tudo isso para esclarecer uma questão apenas: ainda que eu não tenha nascido no tempo das cartas – e nem seja capaz de revivê-lo com maestria, gostaria de dizê-los que sou do tempo do e-mail; da multimodalidade; da linguagem mais simples; da própria correria que se imprime na falta de elementos coesivos. Percebam, por exemplo, que me valho dessa incrível invenção do destinatário duplo; múltiplo – possibilitando a cópia, como se fosse possível transcorrer da mesma forma por dois momentos de escrita distintos. Esforcei-me, ainda assim, para escrever um texto na altura dos inaugurais deste sítio, no entanto preciso contar-lhes que meus jargões partirão em retirada com o passo de meu próprio cavalo chamado Sinceridade. Não esperem, portanto, de mim rebuscamento linguístico, mas sinceridade; abertura de alma; acalento; e qualquer coisa de Filosofia feita às pressas.

Feita às pressas: assim como manda o relógio desse meu tempo; nosso tempo. Aliás, tempo de quem mesmo? O passo é nosso, a velocidade com que andamos também. Eu ando rápido porque me compete, mas há quem ande em trote; em galope; em caminhada livre e despreocupada. Não sei, de fato, a melhor opção.

Mas veja só: por ser uma carta – ainda que cibernética carta mandada aos quatro cantos da Web, há um registro. Daqui um tempo, quando me debruçar outra vez sobre essas palavras, provavelmente sorrirei discreto (e por que não timidamente chorando?) ao relembrar que previ esse encontro de tempos. De fato, estamos subvertendo as regras: enquanto o passo da Internet é veloz e desenfreado, abrimos uma fenda atemporal para as palavras subsistirem. Somos anti-heróis, quem sabe; ou não somos nada. Aliás, ser nada é condição sine qua non para ser dono também de todos os sonhos do mundo. Esse é um sonho: ser eterno. E seremos; ou melhor: estamos sendo – porque a eternidade é um gerúndio. Permitam-me essas filosofias como desfecho ou como início de minha estadia neste lar.

Não sei se há respostas para essa carta, mas espero qualquer comentário que me venha de encontro; e me permita, por fim, retirar de minha escrita as letras capitais – as quais me doem nos olhos, na alma e na escrita. Gosto da linearidade da minúscula, porque não entendo nenhuma palavra como mais importante do que as outras. Mas isso é tema para outro momento, encerro-me por aqui: cansado e indo dormir; depois de gastar-me para escrever um texto digno de ser posto num envelope e atravessar um oceano, um continente, uma cidade ou, até mesmo, apenas algumas telas de computador.

Com açúcar, com afeto,

S.