João/Stefano #3

Metalinguístico amigo Stefano,

Sabia que você entraria em grande (e rebuscado) estilo na conversação das cartas. Se você se sentiu pouco à vontade naquele registro, você só provou que sabe se sair com desenvoltura até numa variedade pouco familiar. A impressão que eu tenho é que você, sendo poeta, só consegue aceitar o valor mais estabelecido — digamos — das palavas após muito questionamento, e com muitas reservas.

Talvez, é claro, eu esteja completamente enganado.

Mas é fato que eu digo “querido” menos pela fórmula do que pelo significado da palavra “querido”. Fórmulas de saudação são o que menos gosto em cartas. Se sinto que outro adjetivo ou advérbio cabe melhor na situação, não hesito em modificá-lo.

E para encerrar este assunto, gostei muito das suas duas cartas, também estou contente com o hibridismo e não acho que você deva se preocupar com as maiúsculas se isso te incomoda. A carta, não esqueçamos, suporta a quebra de fronteiras de elementos genéricos como ninguém.

De volta à viagem: aceito a proposta. Não sei como, mas já sei onde e quando: Europa, segundo semestre. A gente merece.

Essa discussão sobre o velho e o novo comporta muito papo. Sinto que você (que já é realmente meu guia na Europa) e alguns outros amigos são para mim como guias do contemporâneo: por mim mesmo, eu acho que não saberia qual é a do século XXI. Note bem: não é que eu acredite que nosso tempo seja inferior de alguma forma aos anteriores. Eu sempre quis e quero compreender o tempo em que vivemos, me encontrar aqui, aprender a amá-lo, descobrir de que forma posso ser relevante e tal. Mas acho que não consigo fazê-lo espontaneamente, sem um certo senso de dever.

A satisfação que encontro em descobrir e redescobrir a Idade Média, por sua vez, como qualquer tipo de prazer, tem o seu lado de capricho, inexplicável, inconsciente. Vou tentar falar sobre o lado menos maluco.

Você já deve ter reparado no fenômeno do crescente número de entusiastas da cultura indiana ao nosso redor, muitas vezes adolescentes. O interesse nas formas de pensamento dessa civilização oriental é uma constante na vida do Ocidente, crescendo junto com a globalização. Muito disso, é claro, tem a ver com o gosto mesquinho pelo exótico, a autoafirmativa e enciclopédica compilação de estereótipos. Mas acredito que há um outro motivo mais profundo para essa importante redescoberta. Eu acredito que uma boa parte desses entusiastas percebem que as perspectivas mais convencionais ou mais familiares pelas quais eles aprenderam a ver o mundo não são suficientes para dar conta de sua (crescente) diversidade. Quando descobrem que existe uma outra perspectiva frente à realidade, impressionante, desenvolvida, capaz de fazer frente às convenções ocidentais modernas e, principalmente, que responde de imediato aos seus anseios mais profundos, sucedem momentos de epifania como este aqui:

Try to realise it’s all within yourself
No one else can make you change,
And to see you’re really only very small
And life flows on within you
And without you
.

O que acontece entre mim e a Idade Média é isso, com um detalhe a mais: em alguns sentidos (certamente em alguns não), os medievais são mais nós do que os indianos. Se eu sou capaz de detalhar esses “sentidos”, devo fazê-lo em outras muitas cartas. Mas acredito que aqui esteja bem próximo à fronteira da intuição inconsciente.

O que posso dizer é que Roma e a Grécia também são mais nós num sentido bem parecido. Com seu desenvolvimento militar, político e retórico, Roma é com certeza uma empolgante forma de nos enxergarmos em nossos antepassados. A Grécia também, com seus ideais de beleza e racionalidade, sua arte — mas esses mundos me parecem próximos, alcançáveis demais. É fácil demais, talvez, ver como nós pensamos muito como os gregos e como os romanos. Pensar como um medieval nos convida bem mais a uma experiência imaginativa. Já vi muitos adjetivos invejáveis serem usados em apologias às literaturas das duas grandes civilizações clássicas. Mas quando se fala de Idade Média, a descrição costuma ser única e característica: a literatura medieval é fascinante.

Há uma grande quantidade de pessoas que são atingidas de forma bastante inesperada por uma atração pungente pelos modos de pensamento do passado. Alguns estão caminhando tranquilamente quando se veem aprisionados sob um templo grego em ruínas. Outros, num passeio despreocupado pela praça da cidade, são repentinamente soterrados nas cinzas do Vesúvio. Eu, que vagara muito tempo sem rumo, num belo dia estaquei de súbito: de uma floresta escura, uma seta de arco-longo bretão vinha zunindo em direção ao meu peito.

Sinceramente,

João G.

[Em resposta a: Stefano/João #2]

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