João/Thomaz #14

Querido Thomaz,

São 22:59, umas dezessete horas antes do meu voo. A maioria das coisas que vêm à minha mente são questões práticas, do tipo: como vou fazer para andar pela cidade arrastando aquela mala colossal e uma mochila considerável nas costas? Obviamente, preocupações tolas: e o meu eu-típico acalma o eu-fórico.

Hoje em dia eu já não costumo ter muita noção do que está acontecendo ao meu redor. Mas quando eu viajei para a Nova Zelândia, sozinho, com apenas dezesseis anos, eu era menos consciente e perceptivo ainda. Eu não tinha ideia dos riscos que estava correndo. Sem essa atitude, minha primeira aventura não teria sido metade do que foi. Estou lutando, com relativo sucesso, para encarnar esse João de dezesseis anos agora.

As pessoas fazem muitas perguntas e as respostas costumam ser as mesmas, over and over again. Estou encarando isso de maneira muito positiva, pois a repetição garante que eu tenho certeza do que estou falando, e me ajuda a repassar as toneladas de informação na minha memória. E ainda há muita lição de casa a fazer.

Uma das questões cruciais é: Por que a Dinamarca? Você sabe que eu sempre quero conhecer esses países de que se pergunta: Que língua eles falam? Qual é a moeda? É muito frio lá? O que tem lá? Talvez a resposta mais correta à pergunta-mãe seja: é o que tem pra hoje. Mas não é isso que eu digo, é claro. Eu respondo o seguinte.

Primeiro, eu aprecio a distância a cultura do país. Você percebe, mas eles não, que essa resposta se aplica também ao Irã, à Nova Zelândia, ao México, a Roma e a Bizâncio, entre muitos outros. Mas não deixa de ser verdade.

Segundo, é uma oportunidade de aprender coisas novas. É uma resposta propositalmente ambígua, pois posso estar me referindo à viagem por si só ou à universidade. Devo ser um dos poucos que está tão empolgado com um quanto com o outro.

Terceiro, porque é um país que tem muito de novo a oferecer que posso trazer de volta. Sobre isso, acho que tenho pouco a comentar. Mas eu sinto que a mesma experiência nos EUA ou na França, por exemplo, (menos ainda nos EUA do que na França) não teria o mesmo impacto de tradução.

Uma coisa ninguém me perguntou ainda, mas é bastante importante. O que eu estou procurando? Pouco falei sobre esse assunto com você, mas ultimamente tenho me pego com frequência num preocupante desespero espiritual decorrente da minha alienação em relação à natureza e à arte. Sem grandes elaborações, simples assim. Talvez, se você assistir à TED Talk do Sebastião Salgado, e lembrar que ando escrevendo e pensando sobre Miyazaki (de novo), você me compreenda melhor. Acredito que os jardins e parques da Dinamarca podem me dar um novo fôlego em relação a isso (você também percebe que, de novo, os jardins e parques da Inglaterra, do Camboja ou do Brasil também poderiam satisfazer essa necessidade, então voltamos à resposta inicial, à resposta sincera a todas as perguntas).

Sentirei sua falta.

Abraços,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #13

João/Thomaz #8

Thomaz,

Que belo modo de colocar as coisas. Um mundo em que as canções do passado são tomadas por fantasias de mentes menos capazes. Isto é um convite irrecusável a um salto para o nosso mundo. E mais especialmente porque eu sou uma daquelas pessoas que acreditam que há algo de profundamente verdadeiro nas canções do nosso passado. Você pergunta: o que seria de nós sem elas?

Acho que poderíamos começar estabelecendo que a “memória das canções” não está numa fase tão ruim como se poderia pensar. Nós temos ouvido recentemente que Ovídio está em alta, e é lindo saber que esse poeta é redescoberto praticamente a cada geração desde a sua própria. O mesmo acontece com Rumi. Se nós falamos em problemas com relação ao esquecimento dessas canções, falamos de divulgação numa escala que outras gerações não conheceram. Falamos das dificuldades de desbravar um território totalmente novo.

Outro ponto importante a ser reconhecido: o mundo sem as canções do passado não é impossível. A perda dessa memória não vai provocar o apocalipse. Nós sabemos que muitas “canções” já foram esquecidas por muito tempo e isso não causou diretamente nenhum dano ao bem-estar da sociedade. Afora isso, há as canções que se perderam e das quais nós nunca vamos saber. Virgílio é importante? Acredito que tenham existido milhares de Virgílios dos quais nós nunca ouviremos falar.

Os que dizem que o fim dos estudos, digamos, do galês medieval provocará a destruição da sociedade estão fantasiando em autodefesa. Se o conhecimento da língua original do Mabinogion se perder, o que resultará é um mundo sem Mabinogion. Não parece afetar a vida de muitas pessoas. Eu me lembro da comunidade ao redor da siderúrgica no Princesa Mononoke de Miyazaki: uma sociedade igualitária, unida, auto-sustentável e que salvou muitas pessoas da marginalidade. A ausência de deuses, de natureza e das “canções do passado” não impede o seu funcionamento.

OK, mas então qual é a importância das canções? Não sei se tenho uma resposta definitiva, mas tenho uma citação que parece se aproximar bastante do que eu sinto (e que você também já conhece):

A experiência literária cura a ferida da individualidade sem arruinar seu privilégio. Há emoções de massa que também curam a ferida, mas destroem o privilégio. Nelas, nossos seres isolados fundem-se entre si, e afundamos de volta à subindividualidade. Mas lendo a grande literatura, torno-me mil homens e ainda permaneço eu mesmo. Como o céu noturno no poema grego, vejo com uma miríade de olhos, mas ainda assim sou eu quem vê. Aqui, tal como no ato religioso, no amor, na ação moral e no conhecimento, transcendo a mim mesmo. E nunca sou mais eu mesmo do que ao fazê-lo.

O homem que se contenta em ser ele mesmo e, portanto, ser menos, vive numa prisão.

C. S. Lewis, Um experimento na crítica literária

Eu acredito que o conhecimento e a admiração das canções do passado tem o poder de nos tornar mais humanos pela alteridade. Isso é tudo que eu posso dizer. Sem elas, perdemos um pouco daquilo que provisoriamente chamo de “sentimentos” dos nossos antepassados, e com isso, um pouco da nossa humanidade. Não é um passo atrás como o do esquecimento da História, que nos leva a repetir os mesmos erros. É o esquecimento que nos inscreve em (nos condena a?) uma esfera menor de experiência humana.

Fraternos abraços,

João G.

[Em resposta a: Thomaz/João #7]

João/Thomaz #2

Meu caro amigo Thomaz,

Como fico feliz em receber sua carta! Concordei, no domingo, que a ideia de uma correspondência pública era extremamente pertinente e, na nossa situação, momentosa: reafirmo, com a ideia materializada, a minha empolgação em levar isso adiante.

Nestes nossos primeiros passos, vamos enfrentar, é claro, o constrangimento da autoconsciência. Confesso que esse monstro, que já me importuna em textos bem mais distanciados, veio aqui arrebatar todo o meu processo de escrita do assunto à linguagem — mas a companhia e o apoio de nossos amigos nesse projeto, um pouco de insistência, mente aberta e (por que não?) sorte podem nos trazer consideráveis recompensas muito em breve.

Para fugir do monstro, então, vamos falar de coisa boa. Continuei trabalhando naquele comentário à filmografia de Miyazaki sobre que conversamos, e em breve te envio um update com os próximos três filmes: KikiNausicaa e o tão esperado Ponyo. Estou enfrentando a pequena frustração de que meus filmes favoritos do diretor, como exibem mais obviamente o tema que venho tentando mostrar, resultam em comentários menores. Lembro-me das suas “pílulas cinematográficas” e listas em que incluía vários livros ou filmes de uma vez. Você já deve ter passado por essa situação, não?

Mas bem, o que queria mesmo dizer é que percebi outra falta nos comentários sobre ele: quando falam da moralidade de seus filmes, dizem apenas que ela não é “preto no branco” e dão o assunto por encerrado. Ora, isso não é muito diferente de dizer que seus protagonistas não se encaixam no padrão hollywoodiano: a afirmação continua sendo “hollywood-cêntrica”. É verdade que seus personagens não personificam concepções heroicas de bom e mau, mas isso não significa ausência de valores: o universo Miyazaki tem uma moral bem nítida, e o núcleo desta moral está nas ações conciliatórias dos protagonistas. É uma moral pacifista, igualitária e, em certo sentido, conservadora (se lembramos a luta pela preservação do myth of concern de Frye).

Não sei o que você acha disso, mas pretendo ainda encaixar essa ideia em algum lugar no meu texto, provavelmente na seção sobre Chihiro. Sinto que meu comentário pequeno sobre esse filme pode frustrar alguns fãs que porventura venham a acessar o texto em busca dele só. E o comportamento dos deuses no filme é propício a essa adição.

É, acho que consegui dizer o que queria. Evidentemente que muitos outros assuntos agora assomam em minha mente, mas não vamos esgotá-los em uma só troca de cartas. Escrevê-las, afinal, está me surpreendendo em sua agradabilidade.

Repito o apelo porque é sincero: anseio pela resposta!

Abraços,

João G.

[Em resposta a: Thomaz/João #1]