João/Thomaz #22

Estátuas de Giacometti

Estátuas de Giacometti

Copenhague, 9 de setembro de 2013.

Querido Thomaz,

Você tem razão ao lembrar a Gesta Danorum: ela foi mencionada na nossa aula (embora, para minha frustração e para o bem dos demais alunos, não tenhamos entrado em tantos detalhes sobre a história medieval da Dinamarca). Na verdade, ela foi sugerida pelo próprio Absalão ao Saxo Grammaticus e é considerada um dos primeiros passos em direção à construção de uma consciência dinamarquesa. Foi um sucesso na época. Acredito que ela não seja tão interessante de se ler quanto a Historia Regum Britanniae, em que Shakespeare também viu mais de uma tragédia.

Também falou-se que Absalão é considerado popularmente o fundador de Copenhague, mas que na verdade ele era mais como um dono da cidade na época em que ela foi fortificada. Sobre o Saxo Grammaticus pouco se sabe, exceto que talvez ele tenha sido educado onde nosso amigo Stefano se encontra atualmente. A Dinamarca já foi bem maior do que é hoje, mas pretendo te escrever sobre isso noutra ocasião.

Os “binders” são exatamente isso que você pensou: o que eles estão “binding” são as folhas que contêm todos os textos das matérias. É prático. Mas, como você já deve ter adivinhado, também é bastante caro. Não sei se isso se deve aos direitos autorais ou à riqueza dos nórdicos. Provavelmente às duas coisas.

Estou prestes a ter minha primeira aula sobre Kierkegaard, que também é uma introdução. A aula seguinte tem o misterioso título “Finding the idea for which I am willing to live and die”. Cursos de filosofia…

Mudandø de åssunto, gostei da sua expressão ”habitante dessas paisagens espirituais do norte”. O Lewis tem uma descrição famosa desse fascinante clima que acaba nos envolvendo quando estamos aqui, algo que ele chama de “Northernness”:

a vision of huge, clear spaces hanging above the Atlantic in the endless twilight of Northern summer; remoteness, severity.

Provavelmente ele nunca chegou a visitar o Museu Louisiana em Humlebæk, no Norte da Zelândia. Eu fiz isso na última sexta-feira, dia 6, com minha colega russa e uma amiga sua que veio da Alemanha. É um dos principais museus de arte moderna do mundo — contém obras de Giacometti, Picasso, Rothko, Andy Warhol, Yves Klein e muitos outros. A mostra temporária eram os trabalhos mais icônicos da Yoko Ono. Estranhamente, eles também têm uma ótima coleção de arte pré-colombiana. É boa mesmo.

Muita esquisitice (pra mim) já pulsa na própria arte moderna; quanto mais feitas essas combinações insólitas. Mas isso não é tudo. A arquitetura do museu, como se espera, é uma obra a ser visitada e apreciada em si. Os espaços de exibição são muito bem distribuídos entre o interior e o exterior, e são articulados de tal forma que algumas vezes me vi – literalmente – perdido em trilhas pantanosas nos jardins do museu.

Numa dessas vezes, aconteceu de acabarmos num morro sobre uma praia do Øresund, o estreito que separa a Dinamarca da Suécia. Quando eu olhei para o mar e vi as luzes distantes de uma cidade estranha do outro lado, percebi que estava a poucos quilômetros de um país que um dia fora inescapavelmente remoto. Oras, eu estou num país que um dia foi deveras remoto. Ali, sentindo o vento gelado entre o Báltico e o Mar do Norte, eu tive por um momento uma sensação diferente, talvez a impressão de que agora qualquer coisa pode acontecer.

Talvez não seja à toa que o jazz de Copenhague é tão respeitado. Porque essa mesma sensação retornou quando fui a um festival de jazz no sábado, sete de setembro. Foram sete shows: os seis primeiros tiveram o efeito das coleções do museu; o sétimo foi como a praia no Øresund. Nele, Rhys Chatham, um conhecido músico experimental, tocou a sua “composição” mais importante, ironicamente intitulada Guitar Trio, com um quinteto de guitarras, baixo e bateria.

A obra consiste em um acorde de E (mi maior) tocado durante vinte minutos a uma batida irregular meio punk. O volume vai aumentando, e com ele as distorções, e o efeito geral é meio psicodélico. Quando a música acabou, ele a tocou novamente. Em seguida veio uma música que não vou precisar descrever: The Well-Tuned Guitar. Segundo Chatham, foi “inspirada pelo filósofo grego Pitágoras”. Os anjos, já dizia Rilke, podem mesmo ser assustadores.

A classuda e excêntrica Jazzhouse

Bar da classuda e excêntrica Jazzhouse

Não se sabe se C. S. Lewis veio alguma vez para a Escandinávia. Sua imagem daqui certamente foi tirada dos livros. Acho que esta nossa história de fato significa muito mais do que eu imaginava.

Saudações,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #21

João/Thomaz #8

Thomaz,

Que belo modo de colocar as coisas. Um mundo em que as canções do passado são tomadas por fantasias de mentes menos capazes. Isto é um convite irrecusável a um salto para o nosso mundo. E mais especialmente porque eu sou uma daquelas pessoas que acreditam que há algo de profundamente verdadeiro nas canções do nosso passado. Você pergunta: o que seria de nós sem elas?

Acho que poderíamos começar estabelecendo que a “memória das canções” não está numa fase tão ruim como se poderia pensar. Nós temos ouvido recentemente que Ovídio está em alta, e é lindo saber que esse poeta é redescoberto praticamente a cada geração desde a sua própria. O mesmo acontece com Rumi. Se nós falamos em problemas com relação ao esquecimento dessas canções, falamos de divulgação numa escala que outras gerações não conheceram. Falamos das dificuldades de desbravar um território totalmente novo.

Outro ponto importante a ser reconhecido: o mundo sem as canções do passado não é impossível. A perda dessa memória não vai provocar o apocalipse. Nós sabemos que muitas “canções” já foram esquecidas por muito tempo e isso não causou diretamente nenhum dano ao bem-estar da sociedade. Afora isso, há as canções que se perderam e das quais nós nunca vamos saber. Virgílio é importante? Acredito que tenham existido milhares de Virgílios dos quais nós nunca ouviremos falar.

Os que dizem que o fim dos estudos, digamos, do galês medieval provocará a destruição da sociedade estão fantasiando em autodefesa. Se o conhecimento da língua original do Mabinogion se perder, o que resultará é um mundo sem Mabinogion. Não parece afetar a vida de muitas pessoas. Eu me lembro da comunidade ao redor da siderúrgica no Princesa Mononoke de Miyazaki: uma sociedade igualitária, unida, auto-sustentável e que salvou muitas pessoas da marginalidade. A ausência de deuses, de natureza e das “canções do passado” não impede o seu funcionamento.

OK, mas então qual é a importância das canções? Não sei se tenho uma resposta definitiva, mas tenho uma citação que parece se aproximar bastante do que eu sinto (e que você também já conhece):

A experiência literária cura a ferida da individualidade sem arruinar seu privilégio. Há emoções de massa que também curam a ferida, mas destroem o privilégio. Nelas, nossos seres isolados fundem-se entre si, e afundamos de volta à subindividualidade. Mas lendo a grande literatura, torno-me mil homens e ainda permaneço eu mesmo. Como o céu noturno no poema grego, vejo com uma miríade de olhos, mas ainda assim sou eu quem vê. Aqui, tal como no ato religioso, no amor, na ação moral e no conhecimento, transcendo a mim mesmo. E nunca sou mais eu mesmo do que ao fazê-lo.

O homem que se contenta em ser ele mesmo e, portanto, ser menos, vive numa prisão.

C. S. Lewis, Um experimento na crítica literária

Eu acredito que o conhecimento e a admiração das canções do passado tem o poder de nos tornar mais humanos pela alteridade. Isso é tudo que eu posso dizer. Sem elas, perdemos um pouco daquilo que provisoriamente chamo de “sentimentos” dos nossos antepassados, e com isso, um pouco da nossa humanidade. Não é um passo atrás como o do esquecimento da História, que nos leva a repetir os mesmos erros. É o esquecimento que nos inscreve em (nos condena a?) uma esfera menor de experiência humana.

Fraternos abraços,

João G.

[Em resposta a: Thomaz/João #7]

João/Stefano #1

Querido Stefano,

Recebi ontem um e-mail da Universidade de Copenhague (r)estabelecendo o prazo de resposta à minha inscrição no curso entre junho e julho. Assim, acredito que me faria bem deixar de lado essa questão, concentrar-me nas demais obrigações que têm seus prazos em junho (isto é, o semestre) e só depois disso me lembrar de qualquer chance de que eu vá para a Dinamarca.

Mas como nem sempre temos disciplina para escolher o que nos faria bem, quero relembrar e sonhar com você os nossos roteiros de viagem pela Europa. Pode ser que nenhum de nós cruze o Atlântico no próximo semestre, pode ser que só um de nós o faça, ou — Deus queira — pode ser que viajemos juntos. Em qualquer caso, é bom termos em mente o que faremos quando quer que venhamos a pisar no Velho Mundo.

Há dois lugares que posso classificar como “essenciais” no caso de a viagem ocorrer. Ei-los:

Poets’ Corner

1) Preciso assistir à cerimônia de entrega da estátua em homenagem a C. S. Lewis no Poets’ Corner da Abadia de Westminster. O aniversário de cinquenta anos de seu falecimento, quando a entrega deve ocorrer, é no dia 22 de novembro. Poderíamos, então, marcar a nossa viagem para a Bretanha para o final desse mês. Há também certa movimentação em Belfast (cidade natal do escritor) para que haja algum tipo de homenagem. Você tem algum plano impreterível nessa data?

2) “Há algo de podre no Reino da Dinamarca.” A corte de Hamlet ficava no castelo de Elsinore. O castelo verdadeiro de Helsingor, inspiração para o cenário da história, fica na costa nordeste da ilha da Zelândia, onde também fica Copenhague. Não podemos perder.

Citei esse dois lugares quase que só como desculpa para ouvir seus comentários sobre as cidades que você deseja visitar. Você, que conhece o lugar presencialmente, o que tem a dizer?

Abraços,

João G.

P.S.: Você sabe que é o fundador desta ideia, não é? Você foi o primeiro a enviar cartas de verdade e relativamente extensas aos seus amigos (no fim do ano passado). Posso dizer, no momento, que os seus desafios continuam me movendo adiante, e que aquilo já me ajudou imensamente.