João/Thomaz #28

“Now I don’t want to raise your expectations. […] High expectations are the way to frustration; low expectations are the way to happiness.”

Bettina Sommer, minha professora de mitologia nórdica.

                                          Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos?

Rainer Maria Rilke, “Primeira Elegia” (Trad. Dora Ferreira da Silva)

Querido Thomaz,

Berlim é monumental.

Eu tenho que começar confessando que não esperava tanto da cidade. Quando minha amiga me convidou à viagem que fiz nos últimos quatro dias, não aceitei sem hesitar bastante. Mas eu aceitei. E a surpresa que senti olhando da janela do primeiro ônibus que peguei em Berlim foi a feliz consequência, da qual nunca vou me esquecer.

É claro que sempre vamos para o lugar com muitas histórias, músicas e imagens que já pré-constroem nossa impressão dele. Eu fiz a viagem para lá consciente disso, refletindo sobre o que a cidade representava para mim à distância.

Eu acredito que Berlim era para mim a cidade onde aconteceu a dramática batalha final da maior guerra de todos os tempos. Eu tinha ouvido tanto sobre o Holocausto, e a Segunda Guerra Mundial, e a Guerra Fria, e a divisão da Alemanha em dois blocos, e os traumas daquelas pessoas e minorias que não consegui deixar de respirar certa tensão no ar durante todo o tempo de minha curta visita. No entanto, andando pelas ruas de Berlim, não fossem as placas comemorativas e homenagens históricas, dificilmente se diria que a Alemanha perdeu essa guerra.

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É claro que o que eu não havia lembrado era que, obviamente, do ponto de vista humanitário, não houve lado vencedor na maior guerra de todos os tempos (que não é a “Segunda Guerra Mundial” mas a guerra entre Alemanha Nazista e União Soviética por si só); e que os traumas, por mais que devam ser respeitados e não esquecidos, já impediram as vítimas da Guerra e da Tirania de seguir em frente por tempo demais.

Memorial Soviético da Guerra

Memorial Soviético da Guerra

Homenagem às Vítimas da Guerra e da Tirania

Homenagem às Vítimas da Guerra e da Tirania

Diferente dessa pré-impressão de Berllim, outras vieram à minha mente como que resgatadas pelo inconsciente e não buscadas. Foi assim que algumas vezes me peguei ouvindo em falso a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach na Berliner Dom e “Another Brick in the Wall, pt. 2” quando visitei o Memorial do Muro de Berlim. Pré-selecionadas ou não, essas obras de arte se inscrevem lindamente na cidade. Fico curioso de saber se você se viu procurando discos voadores no céu de Londres.

Berliner Dom

Berliner Dom

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Memorial do Muro de Berlim

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Nenhuma dessas obras, no entanto, representa tão bem para mim o ar intimidador da beleza de Berlim como o início da Primeira Elegia de Duíno de Rilke. Talvez seja isso mesmo que apaga a derrota de 45: as celebrações do triunfo do Império (Prússia ou Alemanha ou Cristianismo) são tão terrivelmente belas que parecem apontar difusamente para algo além de suas motivações mundanas. Para os Anjos, talvez.

De fato, as estátuas de anjos olhando inclinados, impassíveis dos pináculos dos palácios para as pessoinhas lá embaixo são uma marca da cidade. Temos que agradecer a Wim Wenders por sua visão mais esperançosa desses anjos, que nos protegem e nos mostram que, no mundo, uma existência espiritual sozinha também não é tudo. E Berlim sabe disso: já tinha experimentado antes de ir para lá, mas também lá, o prazer gloriosamente humano da cerveja alemã e a capacidade incrível de se divertir da gente de lá.

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Talvez muito do que está por trás de nossas jornadas seja a busca de uma síntese única desse jogo de pingue-pongue do nosso olhar entre a Terra e o Céu. E eu acho que encontrei um vislumbre dessa busca nas pinturas de Caspar David Friedrich, o que me leva a comentar a parte mais impressionante dessa viagem: os museus de Berlim. Os guias dizem que são mais de duzentos, então vou me limitar aos três que visitei: Pergamonmuseum, Bode-Museum e Alte-Nationalgalerie.

O primeiro se concentra na restauração e reconstrução de grandes estruturas arquitetônicas antigas e é resultado da extensiva, ampla e respeitada pesquisa arqueológica alemã dos séculos XIX e XX. Mostra um pouco das referências mais antigas para a grandeza urbana de Berlim. Ver essas instalações tão bem feitas nos dá uma melancólica sugestão do caminho que a pesquisa no país seguia antes de tornar-se vítima do imperialismo do Estado.

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O Bode-Museum, de nome engraçado para nós, expõe mais algumas daquelas referências, desta vez passando pela Antiguidade Tardia (principalmente o Império Bizantino), pela Idade Média e pelo Renascimento. Sua impressionante arquitetura barroca é testemunha disso. É interessante notar como a Alemanha se posiciona, não só geograficamente, no encontro entre as renascenças italiana, francesa e holandesa.

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Na Alte-Nationalgalerie o foco é a arte alemã a partir da modernidade, mas não se excluem obras daqueles países que, é claro, sempre servem de referência. Aqui é que se encontram as obras de Friedrich e do meu caro Romantismo Alemão. Passei mais de uma hora nessas salas que, como disse, pareciam tocar uma busca muito importante para mim.

Mulher numa Janela, Caspar David Friedrich (1822)

Mulher numa Janela, Caspar David Friedrich (1822)

Árvore Solitária, Caspar David Friedrich (1822)

Árvore Solitária, Caspar David Friedrich (1822)

Ruínas de Eldena, Caspar David Friedrich (1825)

Ruínas de Eldena, Caspar David Friedrich (1825)

A moça inclinada, em cuja posição inevitavelmente nos colocamos, olha da janela de casa para o mundo exterior; o grande carvalho, sugestivo da Yggdrasil, sai da terra, atravessa as montanhas e toca o céu com seus últimos galhos; pessoas simples vivem sua vida simples dentro das ruínas de algo poderoso, antigo, grande e sagrado (este último me levou às lágrimas, literalmente). Diferentes expressões da proximidade inalcançável entre o nosso mundo e algo além dele. Não esquecendo a apropriação nazista desse romantismo, me pergunto se o apelo que essas imagens têm para mim é um defeito, um capricho adolescente. Acho que posso terminar deixando essa pergunta para você. O que me diz?

De qualquer forma, Berlim foi uma viagem incrível.

Nascimento da Lua sobre o Mar, Caspar David Friedrich (1822)

Nascimento da Lua sobre o Mar (detalhe), Caspar David Friedrich (1822)

Com carinho,

João G.

PS: Sobre nossa discussão anterior, acho que sua resposta combinada com o item 5 desse artigo também me fizeram repensar a ideia do “fim” onipresente (aliás, o artigo todo é muito interessante, apesar do tom “soco na cara”). http://www.cracked.com/blog/5-popular-beliefs-that-are-holding-humanity-back/

Em resposta a: Thomaz/João #27

João/Thomaz #14

Querido Thomaz,

São 22:59, umas dezessete horas antes do meu voo. A maioria das coisas que vêm à minha mente são questões práticas, do tipo: como vou fazer para andar pela cidade arrastando aquela mala colossal e uma mochila considerável nas costas? Obviamente, preocupações tolas: e o meu eu-típico acalma o eu-fórico.

Hoje em dia eu já não costumo ter muita noção do que está acontecendo ao meu redor. Mas quando eu viajei para a Nova Zelândia, sozinho, com apenas dezesseis anos, eu era menos consciente e perceptivo ainda. Eu não tinha ideia dos riscos que estava correndo. Sem essa atitude, minha primeira aventura não teria sido metade do que foi. Estou lutando, com relativo sucesso, para encarnar esse João de dezesseis anos agora.

As pessoas fazem muitas perguntas e as respostas costumam ser as mesmas, over and over again. Estou encarando isso de maneira muito positiva, pois a repetição garante que eu tenho certeza do que estou falando, e me ajuda a repassar as toneladas de informação na minha memória. E ainda há muita lição de casa a fazer.

Uma das questões cruciais é: Por que a Dinamarca? Você sabe que eu sempre quero conhecer esses países de que se pergunta: Que língua eles falam? Qual é a moeda? É muito frio lá? O que tem lá? Talvez a resposta mais correta à pergunta-mãe seja: é o que tem pra hoje. Mas não é isso que eu digo, é claro. Eu respondo o seguinte.

Primeiro, eu aprecio a distância a cultura do país. Você percebe, mas eles não, que essa resposta se aplica também ao Irã, à Nova Zelândia, ao México, a Roma e a Bizâncio, entre muitos outros. Mas não deixa de ser verdade.

Segundo, é uma oportunidade de aprender coisas novas. É uma resposta propositalmente ambígua, pois posso estar me referindo à viagem por si só ou à universidade. Devo ser um dos poucos que está tão empolgado com um quanto com o outro.

Terceiro, porque é um país que tem muito de novo a oferecer que posso trazer de volta. Sobre isso, acho que tenho pouco a comentar. Mas eu sinto que a mesma experiência nos EUA ou na França, por exemplo, (menos ainda nos EUA do que na França) não teria o mesmo impacto de tradução.

Uma coisa ninguém me perguntou ainda, mas é bastante importante. O que eu estou procurando? Pouco falei sobre esse assunto com você, mas ultimamente tenho me pego com frequência num preocupante desespero espiritual decorrente da minha alienação em relação à natureza e à arte. Sem grandes elaborações, simples assim. Talvez, se você assistir à TED Talk do Sebastião Salgado, e lembrar que ando escrevendo e pensando sobre Miyazaki (de novo), você me compreenda melhor. Acredito que os jardins e parques da Dinamarca podem me dar um novo fôlego em relação a isso (você também percebe que, de novo, os jardins e parques da Inglaterra, do Camboja ou do Brasil também poderiam satisfazer essa necessidade, então voltamos à resposta inicial, à resposta sincera a todas as perguntas).

Sentirei sua falta.

Abraços,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #13

João/Thomaz #4

Thomaz,

Você tem razão: passei por cima do assunto dos textos curtos como se fosse óbvio; como se já o tivéssemos discutido antes.

As suas descrições dos tipos de extensão são reveladoras. Apreciamos a concisão sem precisar aprender, sem precisar explicar. Seu valor é tomado como evidente por nós. O que você fez foi esclarecer o que não se deve confundir com concisão — um estágio intuitivamente posterior ao da discussão sobre o que ela é. O prazer do desenvolvimento e do fôlego, entretanto, precisa ser resgatado, justificado e homenageado.

O fato é que o texto sobre a obra de arte, que chamamos de crítica, é tão diverso em suas possíveis formas e propósitos quanto a própria arte que descreve, senão mais. Às vezes escrevemos para explicar, descrever, classificar uma obra ou uma experiência de leitura (como o C. S. Lewis); às vezes buscamos suscitar novamente as emoções, sentimentos, sensações ou o que se tenha experienciado no momento da apreciação (recordo-me agora dos românticos: Hoffman, Goethe etc.); há quem simplesmente elogie os “gênios” sem parar (Bloom). E por aí vai. Aceitamos tranquilamente que as ciências, que são conjuntos de textos sobre a natureza, nos levem a construir um colisor de hádrons de 27 quilômetros de diâmetro para encontrar o bóson de Higgs (que é o quê, mesmo?). Essa é a versão “ciências da natureza” do Golden Bough. Se compreendemos isso, podemos, pois, aceitar igualmente os comentários sobre obras de arte que são maiores do que as próprias obras.

Em um texto do seu blog você disse que nós e as obras de arte somos constituídos das mesmas coisas. Achei uma ideia muito interessante. Tanto a vida como a arte são feitas de acontecimentos, sensações, tempo, sonhos e desejos, etc. É muito mais fácil entender esse fenômeno dos comentários maiores que o original se pensarmos nas obras que os motivam dessa maneira. Acredito que muito da crítica, no fundo, trata dessas coisas. Não há dúvida que muitas delas comportariam uma vida toda de discussões. E a concisão, destaco de sua carta, só é mais forte quando é síntese de tudo isso.

Mas agora você me deixou curioso: o que o “preto no branco” tem a ver com Game of Thrones?

Efusivamente,

João G.

[Em resposta a: Thomaz/João #3]