João/Thomaz #26

Querido Thomaz,

Sua última carta foi bastante surpreendente. Por um lado, você reconhecidamente ignorou os meus relatos da carta anterior – o que, é claro, absolutamente não levo a mal; pelo contrário, não consigo deixar de esboçar um leve sorriso de satisfação nas frequentes ocasiões em que nossas correspondências escapam do esperado. Por outro lado, o impacto do seu texto em si, em especial nas palavras finais, deixou bastante claro que a dimensão dessa experiência de leitura reduz as minhas andanças a trivialidades turistóides.

Devo dizer, no entanto, que as minhas últimas experiências aqui dialogam profundamente com o que você expressou a respeito dos textos bíblicos e homéricos. Tenho observado o “fim de nossa civilização” de muito perto, embora não chegue a estar numa de suas antigas capitais. Chamamos de nossa civilização e nossa cultura um conjunto de pesados monumentos em grande parte estabelecidos aqui no velho continente e que hoje se encontram rachados e cobertos de musgo, quando não já em pedaços. Não obstante eles ainda sejam muitos, e pesados, e ainda estejam espalhados por toda parte, é possível sentir o peso constrangedor de sua inadequação no ar da cidade e em diversos incidentes simbólicos.

Estágios de existência

Aqui é interessante levar em consideração a posição dos nórdicos nesse amálgama de tradições matriciais de nossa cultura. Eis um povo que provocou uma impressão vultosa e inconfundível na história! Eis os navegantes, os verdadeiros descobridores da América! A Guarda Varegue de Constantinopla, os príncipes da Rússia de Kiev! Os vikings, os piratas e saqueadores, os vendedores de escravos das feiras árabes! Os escaldos, os profetas das sagas e das Eddas! No entanto, onde encontrá-los agora? Tenho relatado minhas visitas a museus e sítios arqueológicos aqui e em outros lugares, e a única sensação que eles de fato me imprimem é a do desaparecimento. E o pouco que podemos enxergar deles parece ser tão importante para a auto-imagem dos habitantes deste pequenino reino…

Ruínas de Trelleborg, fortificação circular de propósito desconhecido da Era Viking. Foi usada por 30 a 40 anos e então abandonada.

Ruínas de Trelleborg, fortificação circular de propósito desconhecido da Era Viking. Foi usada por 30 a 40 anos e então abandonada.

Mesmo os poemas islandeses de Snorri Sturluson transparecem essa precariedade. Neles, como se sabe, não podemos caminhar duas estrofes sem encontrar: a) uma referência histórica completamente obscura; b) uma escandalosa contradição; ou c) um capricho moral ou estético do escritor ou do copista. A frase mais abundante nas minhas notas sobre o Gylfaginning, o terço inicial da Edda em Prosa, e sobre a Voluspá, a profecia de criação da Edda Poética, é: “Nobody knows.

Essas características também são verdadeiras a respeito da Bíblia e da Ilíada, no entanto; e nesse sentido, acho que estudar a literatura nórdica pode ser uma experiência bastante iluminadora. Parece-me que o caráter fundacional desses textos reside tanto nas suas lacunas como nos seus relatos, digamos, objetivos. A linguagem metafórica sempre é, de certa perspectiva, um contrassenso. E o que chamamos na literatura de Estranhamento pode estar fortemente ligado à construção de mentalidades mesmas, talvez até de uma cultura.

Tentativa de reconstrução histórica do processo de fabricação de navio de guerra viking em Ladby, Funen.

Tentativa de reconstrução histórica do processo de fabricação de navio de guerra viking em Ladby, Funen.

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Nota não-relacionada: Quando você terminar de ver o penúltimo episódio de Breaking Bad, leia esta citação de Kierkegaard:


Alas, it is terrible to see a person rushing headlong to his own downfall; it is terrible to see him dancing on the edge of the abyss without suspecting it; but this clarity about himself and his own downfall is even more terrible. It is terrible to see a person seek solace by plunging into the vortex of despair, but even more terrible is the composure that in the anguish of death a person does not call or scream for help, “I am going down, save me!” but calmly wants to be a witness to his own perdition. […] What dreadful double-mindedness to want in one’s perdition to derive a kind of advantage from the fact that the good exists, the only thing one has not willed!

— Upbuilding Discourses in Various Spirits, trans.  Howard V. Hong & Edna Hong, Princeton Univ. Press, 1993 (p. 33-34).

[É aterrorizante ver uma pessoa que avança disparada para sua própria ruína; é aterrorizante vê-la dançando à beira do abismo sem suspeitá-lo; mas esta lucidez sobre si mesma e sobre sua própria queda é ainda mais terrível. É terrível ver uma pessoa mergulhando no redemoinho da aflição em busca de refúgio, mas ainda mais terrível é a compostura com que, na angústia da morte, uma pessoa não clama por ajuda, “estou afundando, salve-me!” mas tranquilamente quer ser testemunha de sua própria perdição. Que terrível vacilação de espírito querer de sua própria perdição deduzir um tipo de ganho pelo fato de que o bem existe, a única coisa que não se deseja!]

Med venlig hilsen,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #25

Thomaz/João #13

Caro João,

Não vou me alongar no assunto “Breaking Bad”, visto que  tratei-o longamente num post do meu blog pessoal recentemente. Pontuo somente que o prazer, em Breaking Bad, depende em grande medida do fato de que Walt não é absolutamente mau, e que tudo de mau que ele faz tem um peso que é sempre muito sentido. A série jamais passa levianamente sobre a morte, por exemplo. Prova disso é a maneira como Walt absorve traços de todos aquele que ele mata. A morte é algo verdadeiramente tangível, cujo peso é recuperado em um mundo que não só a transformou em banal – a máfia, o tráfico, a violência de modo geral – como a esconde ou ignora e, portanto, em certa medida a esvazia.

Quanto ao seu sonho, é sempre assombroso observar as sugestões, o mistério, a construção narrativa dos sonhos. Os seus, pelo que você me conta, costumam ter uma qualidade muito particular, uma concisão tremenda, uma simplicidade magnética. Esse assunto dos sonhos é sempre intrigante pois eles (os sonhos) parecem ser a matriz mais básicas das narrativas, de um funcionando semelhante ao do mito. Daí, talvez, a igual força que sentimos ao redor dos mitos.

Mas vamos lá. Sua viagem para o Reino da Dinamarca se aproxima. Que pensamentos assomam sobre a sua fronte?

Um abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #12

João/Thomaz#12

Thomaz,

Things dark and heinous in this world, indeed.

Acho que nós (e a TV) temos uma inclinação para séries sombrias e/ou violentas com um forte tom realista. The Wire, Breaking Bad, The Sopranos, Rome, Game of Thrones, Twin Peaks etc.

Estava pensando esses dias que Breaking Bad é bem parecido com Lolita: parte de seu magnetismo está em ver o protagonista construindo o seu mundo particular onde suas ações são justificáveis ou, mesmo que assustadoras, plausíveis. No final, não temos certeza, ainda, se é muito doentio ter apreciado o que vimos ou lemos, se é muito bizarro dizer que gostamos muito da série ou do livro.

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Mudando de assunto. Uns dias atrás eu acordei ao som do despertador do meu celular, o qual desliguei. Quando olhei para a tela, havia uma anotação que eu não lembrava ter escrito, ainda sem salvar:

Mulher jovem gritando np cinema: a velha esta quente ela esya prested a pedir licenca

Fiquei olhando para aquilo sem saber se eu tinha acordado de verdade. Até que eu lembrei. Eu estava numa sala de cinema, vendo um filme em preto e branco e sentindo certo mal-estar, pra ser sincero. De repente, uma  mulher se levanta de uma das fileiras da frente. Ela é brilhante e preta e branca como os personagens do filme. Ela está desesperada e começa a gritar: “A velha está quente! Ela está prestes a pedir licença!” Ela queria dizer que a mãe dela estava morrendo.

Hediondo.

Abs,
João G.

Em resposta a: Thomaz/João #11

Thomaz/João #11

João,

Suas palavras na última carta parecem ecoar um rumor das profundezas. Sua descrição da mudança e da permanência pressupõe um fluxo ininterrupto com o qual cada um tenta lidar à sua maneira. É esse o fluxo que produz aquele rumor, e ao qual perseguimos incessantemente – sem alcançar. Em nossos tempo de il n’y a pas de hors-texte, não podemos falar em essência, mas talvez possamos falar em âmago como aquilo de inacessível que parece existir justamente porque inacessível. É como a matéria e a energia escuras de uma certa física moderna que, diante da impossibilidade de uma Teoria de Tudo, se depararam com esse Opaco intransponível que, paradoxalmente, justifica todo o resto.

O Pynchon trabalha um pouco com isso no Against the day, ele fala de um “level where dualities are resolved”, onde se percebe que as coisas não são unívocas, monádicas, mas apresentam uma dualidade que é fruto de um núcleo contraditório. As bases não são sólidas, mas perigosamente enganadoras.

Esse mergulho nas profundezas, essa relação entre aparências e, não essências, mas fundamentos, sempre vai me lembrar do David Lynch e da sua exploração desses terrenos sombrios. A obra do Lynch sempre tratou disso, e como consequência tem como um de seus principais elementos o medo. O medo, essa coisa absurda e imensa que nasce da imaginação, da memória, do desconhecido. Não conheço ninguém que molde o medo como o Lynch. Ele consegue produzir uns efeitos que são acachapantes.

Em Twin Peaks, o Agente Cooper, que está na cidade investigando a morte da Laura Palmer, diz pra mãe: “Mrs. Palmer, there are things dark and heinous in this world.” Isso é muito forte, porque Twin Peaks é uma daquelas cidadezinhas americanas suburbanas, cheia de caipiras, rodeada de árvores, onde todo mundo se conhece e parece que os ruídos da cidade grande não podem chegar. Mas na obra do Lynch (e, por que não, em Breaking Bad), esses lugares são sempre cenário para o horror. É forte também porque o Agente Cooper é uma das pessoas mais boas do universo, um homem que ama profundamente a vida, em especial as coisas simples, e que, ainda mais importante, consegue o fato raro, se não inaudito, de ser carismático nestas condições. Mas ele diz aquilo, ele diz que há “dark and heinous things in this world”, e quando ele diz isso dá pra ouvir toda a dor contida nessas palavras.

Comecei a ver o Piloto da série com a Ana (ela nunca viu) outro dia, mas devido ao sono não conseguimos continuar. Além disso, fiquei tremendamente perturbado, muito mais do que da primeira vez que eu assistira. Fui atingido no peito pelos fatos que iam sendo mostrados ali. O Lynch moldou a tela de modo a não apresentar nada senão a força do puro e terrível fato, do fato cheio de arestas, duro ao toque, sem ter por onde pegar.

Pode-se argumentar que o problema era comigo, já que da primeira vez que eu assisti não senti a mesma coisa. Mas eu acredito que a experiência plena da arte exige um processo de sensibilização que é muito difícil de atingir, e que em cada pessoa tem seu próprio passo e seus próprios momentos. Eu precisei ver praticamente todos os filmes do Lynch, ter passado por Twin Peaks uma vez, ter tido experiências pessoais mesmo para retornar ao início da série e sentir o mal estar se instalando à beira do insuportável. Isso tudo pode ter a ver com uma pequena teoria da recepção da arte de que talvez falemos numa carta futura.

Thomaz

[Em resposta a: Thomaz/João #10]