Querido Thomaz,
Sua última carta foi bastante surpreendente. Por um lado, você reconhecidamente ignorou os meus relatos da carta anterior – o que, é claro, absolutamente não levo a mal; pelo contrário, não consigo deixar de esboçar um leve sorriso de satisfação nas frequentes ocasiões em que nossas correspondências escapam do esperado. Por outro lado, o impacto do seu texto em si, em especial nas palavras finais, deixou bastante claro que a dimensão dessa experiência de leitura reduz as minhas andanças a trivialidades turistóides.
Devo dizer, no entanto, que as minhas últimas experiências aqui dialogam profundamente com o que você expressou a respeito dos textos bíblicos e homéricos. Tenho observado o “fim de nossa civilização” de muito perto, embora não chegue a estar numa de suas antigas capitais. Chamamos de nossa civilização e nossa cultura um conjunto de pesados monumentos em grande parte estabelecidos aqui no velho continente e que hoje se encontram rachados e cobertos de musgo, quando não já em pedaços. Não obstante eles ainda sejam muitos, e pesados, e ainda estejam espalhados por toda parte, é possível sentir o peso constrangedor de sua inadequação no ar da cidade e em diversos incidentes simbólicos.
Aqui é interessante levar em consideração a posição dos nórdicos nesse amálgama de tradições matriciais de nossa cultura. Eis um povo que provocou uma impressão vultosa e inconfundível na história! Eis os navegantes, os verdadeiros descobridores da América! A Guarda Varegue de Constantinopla, os príncipes da Rússia de Kiev! Os vikings, os piratas e saqueadores, os vendedores de escravos das feiras árabes! Os escaldos, os profetas das sagas e das Eddas! No entanto, onde encontrá-los agora? Tenho relatado minhas visitas a museus e sítios arqueológicos aqui e em outros lugares, e a única sensação que eles de fato me imprimem é a do desaparecimento. E o pouco que podemos enxergar deles parece ser tão importante para a auto-imagem dos habitantes deste pequenino reino…
Mesmo os poemas islandeses de Snorri Sturluson transparecem essa precariedade. Neles, como se sabe, não podemos caminhar duas estrofes sem encontrar: a) uma referência histórica completamente obscura; b) uma escandalosa contradição; ou c) um capricho moral ou estético do escritor ou do copista. A frase mais abundante nas minhas notas sobre o Gylfaginning, o terço inicial da Edda em Prosa, e sobre a Voluspá, a profecia de criação da Edda Poética, é: “Nobody knows.”
Essas características também são verdadeiras a respeito da Bíblia e da Ilíada, no entanto; e nesse sentido, acho que estudar a literatura nórdica pode ser uma experiência bastante iluminadora. Parece-me que o caráter fundacional desses textos reside tanto nas suas lacunas como nos seus relatos, digamos, objetivos. A linguagem metafórica sempre é, de certa perspectiva, um contrassenso. E o que chamamos na literatura de Estranhamento pode estar fortemente ligado à construção de mentalidades mesmas, talvez até de uma cultura.
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Nota não-relacionada: Quando você terminar de ver o penúltimo episódio de Breaking Bad, leia esta citação de Kierkegaard:
Alas, it is terrible to see a person rushing headlong to his own downfall; it is terrible to see him dancing on the edge of the abyss without suspecting it; but this clarity about himself and his own downfall is even more terrible. It is terrible to see a person seek solace by plunging into the vortex of despair, but even more terrible is the composure that in the anguish of death a person does not call or scream for help, “I am going down, save me!” but calmly wants to be a witness to his own perdition. […] What dreadful double-mindedness to want in one’s perdition to derive a kind of advantage from the fact that the good exists, the only thing one has not willed!— Upbuilding Discourses in Various Spirits, trans. Howard V. Hong & Edna Hong, Princeton Univ. Press, 1993 (p. 33-34).
[É aterrorizante ver uma pessoa que avança disparada para sua própria ruína; é aterrorizante vê-la dançando à beira do abismo sem suspeitá-lo; mas esta lucidez sobre si mesma e sobre sua própria queda é ainda mais terrível. É terrível ver uma pessoa mergulhando no redemoinho da aflição em busca de refúgio, mas ainda mais terrível é a compostura com que, na angústia da morte, uma pessoa não clama por ajuda, “estou afundando, salve-me!” mas tranquilamente quer ser testemunha de sua própria perdição. Que terrível vacilação de espírito querer de sua própria perdição deduzir um tipo de ganho pelo fato de que o bem existe, a única coisa que não se deseja!]
Med venlig hilsen,
João G.
Em resposta a: Thomaz/João #25