Querido Thomaz,
As músicas me fazem um bem danado, já que não pude trazer todas que queria para cá. Espero que você responda todas as minhas cartas, porque ajuda a matar as saudades. E não é tão fácil assim se informar sobre o Brasil aqui. Além disso, me parece que o seu semestre está um pouco mais interessante na faculdade desta vez. Se puder me falar sobre essas coisas, ficarei imensamente grato.
Quase todos os últimos dias te escrevi uma carta. Ontem escrevi uma pela sexta e pela quinta. Pra não ficar muita coisa, selecionei as partes mais relevantes das três cartas e fiz esse resumo da semana. Veja só.
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28/08/13, quarta-feira, por volta de 1 da manhã (lembre-se de subtrair 5 horas para achar a hora no Brasil):
Querido Thomaz,
Ainda não vi sua resposta, mas estou escrevendo porque preciso escrever, de verdade.
Senti o choque cultural com muita força hoje. […]
Isso foi de manhã. São 1:16 agora. Às 13:00, irão se completar 48 horas que cheguei a Copenhague. Quando foi que as horas começaram a passar tão devagar?
[…]
Nessa situação, abri o “Study Abroad Guide” da universidade na seção “Culture Shock”. Estava tudo lá. Você não vai conseguir comprar as coisas certas, você vai se sentir sozinho, você vai idealizar a cultura de casa etc. Fácil falar; difícil é pagar 10 reais no bilhete errado do metrô e coisas do tipo (no caso do metrô, fui com o bilhete errado mesmo: era o mesmo preço do certo e ninguém veio conferir).
[…]
Às 22 horas, eu senti mais forte ainda o peso da mudança que estou sofrendo. É noite e eu estou sozinho aqui, cheio de problemas pra resolver e incapaz até mesmo de comprar a comida certa. Me permiti chorar, e com intensidade. Não lembro se passei por isso na NZ, mas acho que sim. Fiquei assim mais ou menos uma hora e peguei o [The] Perks [of being a wallflower], que a Ana falou que ia me ajudar. Ela estava certa!
Muita água suja saiu de mim, muito água limpa entrou.
Minha cabeça dói. Vou dormir mais um pouco.
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28/08/2013, quarta-feira, 20:31
Querido Thomaz,
Hoje dei godmorgen a Copenhague com menos ânimo do que ontem. Precisei reunir forças para levantar da cama. Estou me sentindo mais denso aqui na Dinamarca – fisicamente mesmo, não sei dizer isso de outro modo. Ontem, depois da choradeira, eu havia anotado no meu caderno três “missões” que eu tinha para cumprir hoje.
3 – Internet
2 – Bike
1 – R[esidence] P[ermit]
A razão para a numeração invertida é que eu escrevi a lista conforme as coisas vieram à minha mente e só depois numerei de acordo com a real importância (Freud explica).
Como minhas pernas estavam destruídas pelas doze horas de caminhada dos dias anteriores, resolvi ir de metrô até a metade do caminho e só andar o resto. Na minha cabeça, hoje era dia de descansar as pernas. Escrever isso agora me dá até vontade de rir considerando como esse dia terminou.
Quando desci do trem, na estação central de Copenhague, algumas coisas atrasaram minha missão. Primeiro, a estação tinha Wi-Fi aberta. Fiquei mais ou menos uma hora olhando as atualizações e comentários dos amigos e conversando com minha família. Também te mandei uma mensagem. Esse é o começo do que promete ser uma longa trajetória de gambiarras para conseguir fazer as coisas sem pagar caro por aqui. Meu primeiro gol num jogo que antes estava pelo menos dois a zero para a Dinamarca.
A outra coisa que atrasou minha missão foi que precisei ir ao banheiro. Não é o que você está pensando. O que aconteceu foi que eu segui as placas até o banheiro, descobri que era pago (5 kr.), desisti de mijar e babei por uma hora pra eliminar os líquidos. OK, a última parte é brincadeira. Mas se eu estivesse numa situação pior e sem dinheiro, teria que arranjar algum outro jeito. Começo a entender porque alguns cantos da cidade fedem tanto.
Na Agência de Imigração (Agência para Recrutamento e Retenção Laboral é o nome verdadeiro, que não faz sentido), tudo correu aparentemente bem. Perguntei várias vezes se o fato de meus documentos estarem em português era um problema, e o máximo que ganhei foi um “I don’t think so. Our people can manage with this.” Se ele está dizendo…
Saí da agência e passei numa loja de bicicletas. Não vendiam bicicletas usadas, e a mais barata custava 3200 kr. Percebi que teria que voltar à universidade para pedir ajuda quanto às outras duas missões. Em protesto contra as tarifas do trem, fui andando (uma hora e meia com paradas para sentar e observar os prédios, os transeuntes, os canais). No caminho, me permiti almoçar no Burger King (gol da Dinamarca). É o primeiro pedaço de carne que como no país (sem contar o estrogonofe bizarro com que queimei a língua enquanto sobrevoávamos a Jutlândia).
Algumas coisas que percebi nessa caminhada mais tranquila. Dizem por aí que Copenhague é uma cidade pouco poluída. Pode ser, mas isso é muito relativo. O ar é, com certeza, muito menos poluído do que em Campinas, mas tenho minhas dúvidas quanto ao chão. A propaganda é exagerada. E ainda não encontrei explicação para a quantidade de areia nas calçadas da cidade inteira.
Numa coisa, entretanto, as pessoas têm toda razão ao elogiar Copenhague. E acredito seriamente que as outras grandes cidades do mundo deveriam copiá-la nesse aspecto. As bicicletas. […] Ainda vou escrever mais detalhadamente sobre isso numa carta futura. Mas estou convencido de que elas podem salvar o mundo, sim.
Assim como em Auckland, meu lugar favorito na cidade é um parque pouco importante.
Rådhuspladsen (prefeitura) + dragões
Down is the new up (a estação central com WiFi grátis)
Voltando à minha missão: eu estava indo para a universidade. A secretária que me atendeu elogiou minha pronúncia do nome do prédio onde moro, Tranehavegård. Ela me apontou um esquema de aluguel de bicicletas por um semestre por preços “student-friendly”. Pelo menos tiveram a honra de não dizer “cheap”. Também me passou quatro empresas de Internet, das quais três exigem que eu tenha um CPF dinamarquês. Comprei um modem e assinei a banda larga pela outra, mas a empresa ainda não me cobrou, por algum motivo. Disseram que o modem chega em cinco dias. A ver.
Parei no café com cujos donos havia conversado na segunda, e um deles ainda se lembrava de mim. Disse que ia colocar meu nome na cadeira em que sempre sento e me deu um Mocha gelado de graça. Também disse que sonha visitar o Brasil durante a Copa e permitiu que eu usasse a Internet lá sempre que precisasse, sem necessidade de comprar nada. O placar até agora está Dinamarca 3 x 2 João.
Voltei para casa andando para não pagar o bilhete do trem novamente (acho que não falei ainda, mas são 24 coroas!). Mas só amanhã saberemos se fiz mais um gol. Minha perna direita está num estado análogo ao da minha mão depois da segunda-feira. Amanhã vou tentar chegar cedo na universidade para pegar o café da manhã gratuito. Se conseguir fazer isso andando, são mais dois gols e viro o jogo.
No total, caminhei cerca de 18 horas nos últimos três dias. No Brasil, não teria feito isso em um mês. Acho que isso é uma coisa boa.
Saudações saudosas,
João G.
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30/08/13, sexta-feira, 22:23
Querido Thomaz,
Os dois últimos dias foram, como previsto, cheios de informação nova que eu mal tenho tempo pra processar. Hoje, porém, foi um dia que, por conta de alguns incidentes, me permitiu parar, pensar e escrever. Então vou tentar te resumir o que foram essa quinta e essa sexta.
[A propósito, eu não consegui ir a pé e cheguei atrasado, mas tomei o café da manhã de graça mesmo assim. Também descobri a cantina da faculdade, onde comi um almoço de primeira por 15,50 coroas. Então acho que o placar está mais ou menos empatado.]
O motivo pelo qual os dois dias foram tão cheios é que neles aconteceram os eventos de apresentação da faculdade. Houve várias palestras que me deram sono, mas que tinham lá seu interesse (sobre o Welfare State dinamarquês, a cultura da bicicleta em Copenhague e coisas assim). Depois vieram algumas visitas guiadas às instalações da faculdade e muitas conversas com outros alunos estrangeiros.
A faculdade é, como se poderia imaginar, um espetáculo a parte. Sobre a qualidade da infraestrutura não vou nem comentar. O padrão é nórdico. Os prédios da Humanistiske Fakultet são bem novos, alguns têm apenas seis meses de idade. São modernos, portanto, e seguem a linha do design dinamarquês reconhecível em outros prédios. Um colega do Canadá, estudante de planejamento urbano, descreveu-os como “progressive and pretty”. As fotos talvez não mostrem tanto todo um ar de utopia futurista que se sente soprar conforme andamos pelo campus.
Salão principal das humanidades
À esquerda dos prédios novos, a Campus Tent, onde costumam acontecer as festas
Depois tem, é claro, os lugarezinhos especiais escondidos no meio desses prédios e praças gigantescos. Há a fantástica livraria de livros acadêmicos, cujo dono cultiva um visual meio viking; as salas de concertos, de estudos, de meditação, de dança, de esgrima, todas sempre cheias de atividades coletivas; os bares de estudantes, em especial um no Instituto de Artes e Estudos Culturais (IKK) chamado (se segura na cadeira) Roland Bar. E as bibliotecas… Ah, as bibliotecas… Você tinha que estar aqui pra ver isso.
- Cadeira de massagem (!) na biblioteca
Roland Bar
Livraria da Ed. Unicamp, ou algo assim
Biblioteca
Durante os dois dias, conheci várias pessoas de várias nacionalidades. Conversei principalmente com alguns poloneses, uma estudante de literatura de São Petersburgo, dois canadenses, dois australianos, três italianas e três francesas. Acabei ficando mais próximo de um estudante de geografia de Vancouver, A. P., que ficou muito feliz em saber que geografia é humanas no Brasil (é uma ciência na universidade dele) e da citada letrista russa, cujo nome, infelizmente, não lembro. Estamos naquele estado em que a gente já conversou demais pra perguntar os nomes um do outro porque nos esquecemos de fazer isso no começo [descobri pelo Facebook do A. P.: A. B.]. No almoço de hoje, na maravilhosa cantina da faculdade, ouvi umas pessoas falando português: era a família de uma professora carioca, casada com um dinamarquês, que daria uma palestra dali a pouco. Foram os primeiros brasileiros que encontrei aqui.
Hoje houve também a cerimônia oficial de matrícula na universidade. Como você viu, a maioria dos alunos era europeia e provavelmente também vinha de universidades antigas com cerimônias parecidas. Para mim, a coisa toda era muito pitoresca. Estávamos num salão do século XVI, enfeitado com pinturas barrocas em todas as paredes, com os reitores de cada faculdade (um deles era clone do Varys) e o reitor da universidade, enfileirados, em vestimentas cerimoniais, ouvindo um coral e uma orquestra tocarem canções tradicionais, em dinamarquês e em latim, saudando os novos alunos. Depois veio o pronunciamento do reitor, cheio de ironia sobre aquilo tudo (“agora vocês vão todos apertar minha mão para selar um juramento do século XV; segundo o qual, se vocês não aceitarem o poder dos professores sobre vocês, vocês vão para a cadeia”). Para mim, foi difícil manter o blasé diante dessas coisas.
O Varys não está aparecendo muito bem, mas é aquele mais à esquerda.
Salão principal da faculdade, no campus central.
Na saída, encontrei mais alguns alunos brasileiros. A primeira foi uma aluna de enfermagem da Unicamp, a outra pessoa da Unicamp que foi selecionada para o programa que estou fazendo. R., um estudante de filme e mídia de Minas, mas também formado pela Unicamp, ouviu a gente conversando e se juntou a nós. Ele vai estudar dois anos aqui, no mestrado. Mais tarde, B., outra mineira, da UFMG, que já está aqui há algumas semanas, nos encontrou. Acho que ela vai fazer alguns cursos comigo. Trocamos Facebooks e conversamos um pouco; principalmente eu, Rafael e nossa colega da Unicamp.
Essa aluna da Unicamp, N., me ajudou em muitas coisas. Inclusive fomos juntos comprar a minha bicicleta (o mais barato e rápido meio de transporte em Copenhague). Eu tinha avisado meus amigos internacionais que ia fazer isso e depois me juntar a eles na nossa festa de recepção. Aconteceu que começou a chover forte enquanto eu voltava da loja de bicicletas. Eu fiquei ensopado como nunca antes e tive que desistir da festa. Quando cheguei ao apartamento, percebi (como de costume) que estava exausto. Talvez eu já não estivesse disposto para a festa antes. Uma pena, pois gostei mesmo dos meus amigos de Vancouver e de São Petersburgo.
Amanhã vou passear com minha nova bicicleta (parece que voltei uns 10 anos no tempo) e ver alguns dos lugares mais turísticos na cidade. Com toda confusão, não posso dizer que não está sendo uma boa primeira semana em Copenhague.
Abraços,
João G.
(31/08/13, sábado, 16:12) PS.: Eu comprei a pior bicicleta do Reino da Dinamarca.
Em resposta a: Thomaz/João #17
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