João/Thomaz #22

Estátuas de Giacometti

Estátuas de Giacometti

Copenhague, 9 de setembro de 2013.

Querido Thomaz,

Você tem razão ao lembrar a Gesta Danorum: ela foi mencionada na nossa aula (embora, para minha frustração e para o bem dos demais alunos, não tenhamos entrado em tantos detalhes sobre a história medieval da Dinamarca). Na verdade, ela foi sugerida pelo próprio Absalão ao Saxo Grammaticus e é considerada um dos primeiros passos em direção à construção de uma consciência dinamarquesa. Foi um sucesso na época. Acredito que ela não seja tão interessante de se ler quanto a Historia Regum Britanniae, em que Shakespeare também viu mais de uma tragédia.

Também falou-se que Absalão é considerado popularmente o fundador de Copenhague, mas que na verdade ele era mais como um dono da cidade na época em que ela foi fortificada. Sobre o Saxo Grammaticus pouco se sabe, exceto que talvez ele tenha sido educado onde nosso amigo Stefano se encontra atualmente. A Dinamarca já foi bem maior do que é hoje, mas pretendo te escrever sobre isso noutra ocasião.

Os “binders” são exatamente isso que você pensou: o que eles estão “binding” são as folhas que contêm todos os textos das matérias. É prático. Mas, como você já deve ter adivinhado, também é bastante caro. Não sei se isso se deve aos direitos autorais ou à riqueza dos nórdicos. Provavelmente às duas coisas.

Estou prestes a ter minha primeira aula sobre Kierkegaard, que também é uma introdução. A aula seguinte tem o misterioso título “Finding the idea for which I am willing to live and die”. Cursos de filosofia…

Mudandø de åssunto, gostei da sua expressão ”habitante dessas paisagens espirituais do norte”. O Lewis tem uma descrição famosa desse fascinante clima que acaba nos envolvendo quando estamos aqui, algo que ele chama de “Northernness”:

a vision of huge, clear spaces hanging above the Atlantic in the endless twilight of Northern summer; remoteness, severity.

Provavelmente ele nunca chegou a visitar o Museu Louisiana em Humlebæk, no Norte da Zelândia. Eu fiz isso na última sexta-feira, dia 6, com minha colega russa e uma amiga sua que veio da Alemanha. É um dos principais museus de arte moderna do mundo — contém obras de Giacometti, Picasso, Rothko, Andy Warhol, Yves Klein e muitos outros. A mostra temporária eram os trabalhos mais icônicos da Yoko Ono. Estranhamente, eles também têm uma ótima coleção de arte pré-colombiana. É boa mesmo.

Muita esquisitice (pra mim) já pulsa na própria arte moderna; quanto mais feitas essas combinações insólitas. Mas isso não é tudo. A arquitetura do museu, como se espera, é uma obra a ser visitada e apreciada em si. Os espaços de exibição são muito bem distribuídos entre o interior e o exterior, e são articulados de tal forma que algumas vezes me vi – literalmente – perdido em trilhas pantanosas nos jardins do museu.

Numa dessas vezes, aconteceu de acabarmos num morro sobre uma praia do Øresund, o estreito que separa a Dinamarca da Suécia. Quando eu olhei para o mar e vi as luzes distantes de uma cidade estranha do outro lado, percebi que estava a poucos quilômetros de um país que um dia fora inescapavelmente remoto. Oras, eu estou num país que um dia foi deveras remoto. Ali, sentindo o vento gelado entre o Báltico e o Mar do Norte, eu tive por um momento uma sensação diferente, talvez a impressão de que agora qualquer coisa pode acontecer.

Talvez não seja à toa que o jazz de Copenhague é tão respeitado. Porque essa mesma sensação retornou quando fui a um festival de jazz no sábado, sete de setembro. Foram sete shows: os seis primeiros tiveram o efeito das coleções do museu; o sétimo foi como a praia no Øresund. Nele, Rhys Chatham, um conhecido músico experimental, tocou a sua “composição” mais importante, ironicamente intitulada Guitar Trio, com um quinteto de guitarras, baixo e bateria.

A obra consiste em um acorde de E (mi maior) tocado durante vinte minutos a uma batida irregular meio punk. O volume vai aumentando, e com ele as distorções, e o efeito geral é meio psicodélico. Quando a música acabou, ele a tocou novamente. Em seguida veio uma música que não vou precisar descrever: The Well-Tuned Guitar. Segundo Chatham, foi “inspirada pelo filósofo grego Pitágoras”. Os anjos, já dizia Rilke, podem mesmo ser assustadores.

A classuda e excêntrica Jazzhouse

Bar da classuda e excêntrica Jazzhouse

Não se sabe se C. S. Lewis veio alguma vez para a Escandinávia. Sua imagem daqui certamente foi tirada dos livros. Acho que esta nossa história de fato significa muito mais do que eu imaginava.

Saudações,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #21

João/Thomaz #20

Querido Thomaz,

Percebi o que você quis dizer com “efeito assombroso” em relação às lacunas da última carta. Não foi intencional, como você disse. Mas acho que, no final das contas, acabou sendo bastante apropriado. Quanto mais escrevo sobre esta viagem, e quanto mais me exponho aqui para quem quer que espione nossa correspondência, mais sinto que esta temporada na Dinamarca e esta narrativa não são só sobre mim e não pertencem só a mim. Eu espero que seja assim.

Mais uma vez, obrigado pelas músicas. As escolhas foram ótimas. Não sei se te falei, mas sabe quais foram os únicos álbuns de música brasileira que trouxe para cá? Clube da EsquinaA Tábua de Esmeralda. O meu favorito e o meu segundo favorito. Ou o meu favorito e o seu favorito. Como você preferir.

Acabo de ter minha primeira aula na faculdade. Foi uma introdução à História da Dinamarca. Bem legal, mas tenho pouco a dizer sobre ela além disso.

Envio aqui a carta que te escrevi esta semana. Ao final, as fotos do passeio de domingo pela Strøget, a rua de pedestres, para deixar a carta menos chata. Dizem os dinamarqueses que é a primeira rua a ser fechada para pedestres na Europa. Mas os dinamarqueses dizem que são os primeiros a fazer tudo na Europa/no Norte da Europa/na Escandinávia. E tendo vivido em Campinas, em São Paulo, no Brasil, nós já conhecemos bem essa história.

Acho relevante, no entanto, o fato de que os dinamarqueses se gabam de ser os primeiros, enquanto nós nos gabamos de ser os maiores.

Mas divago.

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Copenhague, 3 de setembro de 2013.

Querido Thomaz,

Ontem eu fiz um calendário do semestre com todas as matérias que vou estudar aqui. Caso você não lembre, elas são:

– Course in Danish Culture (15 ECTS)

– Søren Kierkegaard and the Challenge of Existence (15 ECTS)

– Danish Cinema (15 ECTS)

– Nordic Mythology (15 ECTS)

– Danish Language Course (7.5 ECTS)

Enquanto conversava com meus colegas sobre as nossas disciplinas, houve duas reações às minhas escolhas que mais me chamaram a atenção.

1 – Isso dá 67.5 créditos, mais do que o esperado para dois semestres!

2 – E se você acabar não gostando da Dinamarca?

Pouco tenho a dizer sobre a segunda reação. Eu, e nós brasileiros em geral, temos a mente bastante aberta para com culturas europeias. Some-se a isso o complexo de inferioridade característico de nosso país (parece bobagem, mas aqui vejo que faz a diferença) e o já citado interesse pela alteridade, e acabo tendo uma boa garantia de que esses estudos vão valer a pena.

Além disso, a Dinamarca inventou o Lego.

A avaliação de cada uma das disciplinas (menos do curso de língua) é um texto de 15 páginas. A carga de leitura é de, em média, umas 140 páginas por curso (de novo, excluído o curso de língua). Parece-me bastante trabalho, mas com certeza está muito longe do impossível.

De fato, eu não sabia dessa história dos ECTS, e nem sonhava que havia um sistema de créditos equivalente em toda a Europa, na Oceania e em parte da América do Norte. Acredito que esse seja um exemplo claro da diferença de cultura acadêmica da maioria dos alunos internacionais aqui (que é da América do Norte e da Europa) para conosco. Eles parecem dar muito mais atenção ao tempo de estudo e de escrita, à vivência na faculdade e aos eventos que nela acontecem do que às disciplinas em si. Não sei como julgar isso ainda. Estou mesmo feliz com minhas matrículas.

A propósito, o Rancière vem aqui no dia 13. Ele vai participar de um debate na Black Diamond, a Biblioteca Central da Universidade de Copenhague, junto com um filósofo alemão que não conheço (risos). Obviamente, quando acontecer, eu te escrevo sobre o assunto.

Eu ainda não acredito que não encontrei ninguém do curso de mitologia nórdica. Ele é o que me deixa mais empolgado com o semestre. Imagine só minha empolgação ao ler sobre aulas como a do dia 3 de outubro:

Lecture 4:    Death

(Oct. 3rd)      The only direct eyewitness to Nordic rituals was an Arabic scholar named Ahmad ibn Fadlan, who saw a Viking funeral in 922 or 923. The description is rightly famous as it is breathtaking. It is possible to corroborate a few of the details with Nordic sources and provide a reasonably solid introduction to the Viking view of death.

(Bettina Sejbjerg Sommer)

                      Expected reading in binder: Ibn Fadlan

Comprei os materiais dos cursos hoje e já fui direto para esse relato. “Breathtaking” descreve bem. Devo mencionar que parte do currículo dos cursos, e da avaliação deles, são excursões em grupo. Neste curso, por exemplo, vamos para o cemitério viking em Roskilde e para um sítio megalítico na Suécia (Ales Stenar). O Course in Danish Culture tem catorze aulas e cinco excursões no total. Seria legal se existissem cursos assim na Unicamp.

Materiais dos cursos

Materiais dos cursos

De qualquer forma, estou bastante ansioso.

Abraços,

João G.

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Estátua do Arcebispo Absalão, o Tywin Lannister da Dinamarca

Estátua do Arcebispo Absalão, o Tywin Lannister da Dinamarca

Entrada da loja da Lego

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Estacionamentos bagunçados de bicicletas: uma visão comum aqui

Estacionamentos bagunçados de bicicletas: uma visão comum

Esse azul meio piscina + tijolinhos são o padrão aqui.

Esse azul meio piscina + tijolinhos são o padrão aqui.

Strøget

Strøget

Aguardo sua resposta.

Saudações,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #19

João/Thomaz #18

Querido Thomaz,

As músicas me fazem um bem danado, já que não pude trazer todas que queria para cá. Espero que você responda todas as minhas cartas, porque ajuda a matar as saudades. E não é tão fácil assim se informar sobre o Brasil aqui. Além disso, me parece que o seu semestre está um pouco mais interessante na faculdade desta vez. Se puder me falar sobre essas coisas, ficarei imensamente grato.

Quase todos os últimos dias te escrevi uma carta. Ontem escrevi uma pela sexta e pela quinta. Pra não ficar muita coisa, selecionei as partes mais relevantes das três cartas e fiz esse resumo da semana. Veja só.

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28/08/13, quarta-feira, por volta de 1 da manhã (lembre-se de subtrair 5 horas para achar a hora no Brasil):

Querido Thomaz,

Ainda não vi sua resposta, mas estou escrevendo porque preciso escrever, de verdade.

Senti o choque cultural com muita força hoje. […]

Isso foi de manhã. São 1:16 agora. Às 13:00, irão se completar 48 horas que cheguei a Copenhague. Quando foi que as horas começaram a passar tão devagar?

[…]

Nessa situação, abri o “Study Abroad Guide” da universidade na seção “Culture Shock”. Estava tudo lá. Você não vai conseguir comprar as coisas certas, você vai se sentir sozinho, você vai idealizar a cultura de casa etc. Fácil falar; difícil é pagar 10 reais no bilhete errado do metrô e coisas do tipo (no caso do metrô, fui com o bilhete errado mesmo: era o mesmo preço do certo e ninguém veio conferir).

[…]

Às 22 horas, eu senti mais forte ainda o peso da mudança que estou sofrendo. É noite e eu estou sozinho aqui, cheio de problemas pra resolver e incapaz até mesmo de comprar a comida certa. Me permiti chorar, e com intensidade. Não lembro se passei por isso na NZ, mas acho que sim. Fiquei assim mais ou menos uma hora e peguei o [ThePerks [of being a wallflower], que a Ana falou que ia me ajudar. Ela estava certa!

Muita água suja saiu de mim, muito água limpa entrou.

Minha cabeça dói. Vou dormir mais um pouco.

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28/08/2013, quarta-feira, 20:31

Querido Thomaz,

Hoje dei godmorgen a Copenhague com menos ânimo do que ontem. Precisei reunir forças para levantar da cama. Estou me sentindo mais denso aqui na Dinamarca – fisicamente mesmo, não sei dizer isso de outro modo. Ontem, depois da choradeira, eu havia anotado no meu caderno três “missões” que eu tinha para cumprir hoje.

3 – Internet

2 – Bike

1 – R[esidence] P[ermit]

A razão para a numeração invertida é que eu escrevi a lista conforme as coisas vieram à minha mente e só depois numerei de acordo com a real importância (Freud explica).

Como minhas pernas estavam destruídas pelas doze horas de caminhada dos dias anteriores, resolvi ir de metrô até a metade do caminho e só andar o resto. Na minha cabeça, hoje era dia de descansar as pernas. Escrever isso agora me dá até vontade de rir considerando como esse dia terminou.

Quando desci do trem, na estação central de Copenhague, algumas coisas atrasaram minha missão. Primeiro, a estação tinha Wi-Fi aberta. Fiquei mais ou menos uma hora olhando as atualizações e comentários dos amigos e conversando com minha família. Também te mandei uma mensagem. Esse é o começo do que promete ser uma longa trajetória de gambiarras para conseguir fazer as coisas sem pagar caro por aqui. Meu primeiro gol num jogo que antes estava pelo menos dois a zero para a Dinamarca.

A outra coisa que atrasou minha missão foi que precisei ir ao banheiro. Não é o que você está pensando. O que aconteceu foi que eu segui as placas até o banheiro, descobri que era pago (5 kr.), desisti de mijar e babei por uma hora pra eliminar os líquidos. OK, a última parte é brincadeira. Mas se eu estivesse numa situação pior e sem dinheiro, teria que arranjar algum outro jeito. Começo a entender porque alguns cantos da cidade fedem tanto.

Na Agência de Imigração (Agência para Recrutamento e Retenção Laboral é o nome verdadeiro, que não faz sentido), tudo correu aparentemente bem. Perguntei várias vezes se o fato de meus documentos estarem em português era um problema, e o máximo que ganhei foi um “I don’t think so. Our people can manage with this.” Se ele está dizendo…

Saí da agência e passei numa loja de bicicletas. Não vendiam bicicletas usadas, e a mais barata custava 3200 kr. Percebi que teria que voltar à universidade para pedir ajuda quanto às outras duas missões. Em protesto contra as tarifas do trem, fui andando (uma hora e meia com paradas para sentar e observar os prédios, os transeuntes, os canais). No caminho, me permiti almoçar no Burger King (gol da Dinamarca). É o primeiro pedaço de carne que como no país (sem contar o estrogonofe bizarro com que queimei a língua enquanto sobrevoávamos a Jutlândia).

Algumas coisas que percebi nessa caminhada mais tranquila. Dizem por aí que Copenhague é uma cidade pouco poluída. Pode ser, mas isso é muito relativo. O ar é, com certeza, muito menos poluído do que em Campinas, mas tenho minhas dúvidas quanto ao chão. A propaganda é exagerada. E ainda não encontrei explicação para a quantidade de areia nas calçadas da cidade inteira.

Numa coisa, entretanto, as pessoas têm toda razão ao elogiar Copenhague. E acredito seriamente que as outras grandes cidades do mundo deveriam copiá-la nesse aspecto. As bicicletas. […] Ainda vou escrever mais detalhadamente sobre isso numa carta futura. Mas estou convencido de que elas podem salvar o mundo, sim.

Assim como em Auckland, meu lugar favorito na cidade é um parque pouco importante.

Assim como em Auckland, meu lugar favorito na cidade é um parque pouco importante.

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Rådhuspladsen (prefeitura) + dragões

Rådhuspladsen (prefeitura) + dragões

Down is the new up

Down is the new up (a estação central com WiFi grátis)

Voltando à minha missão: eu estava indo para a universidade. A secretária que me atendeu elogiou minha pronúncia do nome do prédio onde moro, Tranehavegård. Ela me apontou um esquema de aluguel de bicicletas por um semestre por preços “student-friendly”. Pelo menos tiveram a honra de não dizer “cheap”. Também me passou quatro empresas de Internet, das quais três exigem que eu tenha um CPF dinamarquês. Comprei um modem e assinei a banda larga pela outra, mas a empresa ainda não me cobrou, por algum motivo. Disseram que o modem chega em cinco dias. A ver.

Parei no café com cujos donos havia conversado na segunda, e um deles ainda se lembrava de mim. Disse que ia colocar meu nome na cadeira em que sempre sento e me deu um Mocha gelado de graça. Também disse que sonha visitar o Brasil durante a Copa e permitiu que eu usasse a Internet lá sempre que precisasse, sem necessidade de comprar nada. O placar até agora está Dinamarca 3 x 2 João.

Voltei para casa andando para não pagar o bilhete do trem novamente (acho que não falei ainda, mas são 24 coroas!). Mas só amanhã saberemos se fiz mais um gol. Minha perna direita está num estado análogo ao da minha mão depois da segunda-feira. Amanhã vou tentar chegar cedo na universidade para pegar o café da manhã gratuito. Se conseguir fazer isso andando, são mais dois gols e viro o jogo.

No total, caminhei cerca de 18 horas nos últimos três dias. No Brasil, não teria feito isso em um mês. Acho que isso é uma coisa boa.

Saudações saudosas,

João G.

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30/08/13, sexta-feira, 22:23

Querido Thomaz,

Os dois últimos dias foram, como previsto, cheios de informação nova que eu mal tenho tempo pra processar. Hoje, porém, foi um dia que, por conta de alguns incidentes, me permitiu parar, pensar e escrever. Então vou tentar te resumir o que foram essa quinta e essa sexta.

[A propósito, eu não consegui ir a pé e cheguei atrasado, mas tomei o café da manhã de graça mesmo assim. Também descobri a cantina da faculdade, onde comi um almoço de primeira por 15,50 coroas. Então acho que o placar está mais ou menos empatado.]

O motivo pelo qual os dois dias foram tão cheios é que neles aconteceram os eventos de apresentação da faculdade. Houve várias palestras que me deram sono, mas que tinham lá seu interesse (sobre o Welfare State dinamarquês, a cultura da bicicleta em Copenhague e coisas assim). Depois vieram algumas visitas guiadas às instalações da faculdade e muitas conversas com outros alunos estrangeiros.

A faculdade é, como se poderia imaginar, um espetáculo a parte. Sobre a qualidade da infraestrutura não vou nem comentar. O padrão é nórdico. Os prédios da Humanistiske Fakultet são bem novos, alguns têm apenas seis meses de idade. São modernos, portanto, e seguem a linha do design dinamarquês reconhecível em outros prédios. Um colega do Canadá, estudante de planejamento urbano, descreveu-os como “progressive and pretty”. As fotos talvez não mostrem tanto todo um ar de utopia futurista que se sente soprar conforme andamos pelo campus.

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Salão principal das humanidades

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À esquerda dos prédios novos, a Campus Tent, onde costumam acontecer as festas

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Depois tem, é claro, os lugarezinhos especiais escondidos no meio desses prédios e praças gigantescos. Há a fantástica livraria de livros acadêmicos, cujo dono cultiva um visual meio viking; as salas de concertos, de estudos, de meditação, de dança, de esgrima, todas sempre cheias de atividades coletivas; os bares de estudantes, em especial um no Instituto de Artes e Estudos Culturais (IKK) chamado (se segura na cadeira) Roland Bar. E as bibliotecas… Ah, as bibliotecas… Você tinha que estar aqui pra ver isso.

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Cadeira de massagem (!) na biblioteca
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Roland Bar

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Livraria da Ed. Unicamp, ou algo assim

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Biblioteca

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Durante os dois dias, conheci várias pessoas de várias nacionalidades. Conversei principalmente com alguns poloneses, uma estudante de literatura de São Petersburgo, dois canadenses, dois australianos, três italianas e três francesas. Acabei ficando mais próximo de um estudante de geografia de Vancouver, A. P., que ficou muito feliz em saber que geografia é humanas no Brasil (é uma ciência na universidade dele) e da citada letrista russa, cujo nome, infelizmente, não lembro. Estamos naquele estado em que a gente já conversou demais pra perguntar os nomes um do outro porque nos esquecemos de fazer isso no começo [descobri pelo Facebook do A. P.: A. B.]. No almoço de hoje, na maravilhosa cantina da faculdade, ouvi umas pessoas falando português: era a família de uma professora carioca, casada com um dinamarquês, que daria uma palestra dali a pouco. Foram os primeiros brasileiros que encontrei aqui.

Hoje houve também a cerimônia oficial de matrícula na universidade. Como você viu, a maioria dos alunos era europeia e provavelmente também vinha de universidades antigas com cerimônias parecidas. Para mim, a coisa toda era muito pitoresca. Estávamos num salão do século XVI, enfeitado com pinturas barrocas em todas as paredes, com os reitores de cada faculdade (um deles era clone do Varys) e o reitor da universidade, enfileirados, em vestimentas cerimoniais, ouvindo um coral e uma orquestra tocarem canções tradicionais, em dinamarquês e em latim, saudando os novos alunos. Depois veio o pronunciamento do reitor, cheio de ironia sobre aquilo tudo (“agora vocês vão todos apertar minha mão para selar um juramento do século XV; segundo o qual, se vocês não aceitarem o poder dos professores sobre vocês, vocês vão para a cadeia”). Para mim, foi difícil manter o blasé diante dessas coisas.

O Varys não está aparecendo muito bem, mas é aquele mais à esquerda.

O Varys não está aparecendo muito bem, mas é aquele mais à esquerda.

Salão principal da faculdade, no campus central.

Salão principal da faculdade, no campus central.

Na saída, encontrei mais alguns alunos brasileiros. A primeira foi uma aluna de enfermagem da Unicamp, a outra pessoa da Unicamp que foi selecionada para o programa que estou fazendo. R., um estudante de filme e mídia de Minas, mas também formado pela Unicamp, ouviu a gente conversando e se juntou a nós. Ele vai estudar dois anos aqui, no mestrado. Mais tarde, B., outra mineira, da UFMG, que já está aqui há algumas semanas, nos encontrou. Acho que ela vai fazer alguns cursos comigo. Trocamos Facebooks e conversamos um pouco; principalmente eu, Rafael e nossa colega da Unicamp.

Essa aluna da Unicamp, N., me ajudou em muitas coisas. Inclusive fomos juntos comprar a minha bicicleta (o mais barato e rápido meio de transporte em Copenhague). Eu tinha avisado meus amigos internacionais que ia fazer isso e depois me juntar a eles na nossa festa de recepção. Aconteceu que começou a chover forte enquanto eu voltava da loja de bicicletas. Eu fiquei ensopado como nunca antes e tive que desistir da festa. Quando cheguei ao apartamento, percebi (como de costume) que estava exausto. Talvez eu já não estivesse disposto para a festa antes. Uma pena, pois gostei mesmo dos meus amigos de Vancouver e de São Petersburgo.

Amanhã vou passear com minha nova bicicleta (parece que voltei uns 10 anos no tempo) e ver alguns dos lugares mais turísticos na cidade. Com toda confusão, não posso dizer que não está sendo uma boa primeira semana em Copenhague.

Abraços,

João G.

(31/08/13, sábado, 16:12) PS.: Eu comprei a pior bicicleta do Reino da Dinamarca.

Em resposta a: Thomaz/João #17

João/Thomaz #16

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Moro aqui

Copenhague, 26 de agosto de 2013.

Querido Thomaz,

Estou datando a carta porque estou mais ou menos sem Internet e não posso publicá-la imediatamente. E incluo o local porque é maneiro. São 20h09 aqui, 5 horas mais tarde que no Brasil, e faz um calor agradável com sombra fresca.

Não quero me demorar muito nisso, mas a falta que você sente pode dar um indício do que eu estou sentindo agora. Fiquei muito feliz por dar um último abraço em você e na Ana antes de partir, há pouco mais de um dia. Não só por ser um paliativo para as saudades, mas porque me lembrei de que vocês vão continuar perto um do outro nesses seis meses.  Assim, nem você nem ela se sentem tão sozinhos quanto poderiam com todas essas partidas. Ainda mais a Ana, que já foi pro Canadá.

E que essas cartas e a Internet nos mantenham provisoriamente próximos nesse tempo. Ia dizer isso na outra carta, mas acabei esquecendo: passarão os céus e a terra, mas não passará o fluxo de links no nosso chat do facebook (amém).

Quanto à minha busca, acredito em você. Vou te dizer uma coisa. Apesar do que escrevi na minha última carta, meu primeiro dia aqui foi bem diferente do meu primeiro dia na NZ. Eu cheguei a Copenhague depois de dois voos longos, ansiosos e mal-dormidos. Passei na imigração e em cinco segundos estava no saguão do aeroporto. Só entendi o que estava acontecendo quando vi um bando de jovens gritando Velkommen e balançando bandeiras dinamarquesas na chegada dos voos internacionais (não pra mim, obviamente). Não vi quando carimbaram meu visto provisório no passaporte, mas ele está lá.

Nesse momento, teria sido bastante razoável eu dar um tempo para respirar aliviado e descansar um pouco (já eram mais de 20 horas desde Campinas) mas, graças aos deuses nórdicos, não o fiz. Segui com o curso planejado: acabou a viagem de avião, começou a corrida para pegar a chave do apartamento antes do fim do expediente (senão teria que arranjar acomodação para o pernoite e pegar a chave no dia seguinte). Eu tinha duas horas. Cheguei na secretaria de atendimento ao aluno com dois minutos de folga. A maior parte da enrolação deveu-se à soma do meu previsto calvário carregando a mala de 28 quilos com as informações contraditórias do meu mapa e das pessoas na rua.

A essa altura, eu já me chateava bastante com Copenhague, e comigo mesmo através da cidade. Não se engane, as ruas pelas quais eu estava andando são magníficas, mas a companhia desagradável da mala estragava tudo. Chegar em Auckland, em comparação, foi tão simples quanto ler uma plaquinha com meu nome no saguão do aeroporto, ir até a van que ela indicava (com outra brasileira) e chegar na casa de um amigável veterano do rugby que acordou de madrugada para tomar chá e conversar comigo numa língua que eu falo.

No atendimento ao aluno, eu peguei uma senha e depositei o fardo ao meu lado (uns minutos depois, percebi que podia ter deixado na rua mesmo; quem conseguisse carregar aquilo embora merecia levar meus pertences como prêmio). A secretária, simpática, (reconheci-a de uma foto na página internacional da universidade), perguntou: Is there any international student out there? Eu levantei a mão. Please take a breath, you just made it, ela respondeu ao ver minha situação. Se eu precisasse subir mais um degrau com a mala, começava a chorar ali mesmo.

Saí de lá com a chave e o RA e, pra acabar com a tortura, chamei um táxi. Pelo preço, o próximo vai ser daqui a seis meses. Eu não sabia se o taxista era italiano ou turco. Só tive certeza quando ele não conseguiu achar o meu apartamento e começou a praguejar balançando as mãos.

Desisti de esperar o taxista achar meu prédio e desci, invocando Thor e Odin para conseguir arrastar o trambolho mais algumas ruas. Reli o endereço um pouquinho, segui mais algumas explicações erradas de dinamarqueses (eles têm um sério problema com lateralidade) e cheguei nessa porta. Imagem

Esse aparente espirro em cima do meu nome é, na verdade, o meu colega de apartamento. Ele ainda não apareceu, mas já sei algumas coisas sobre ele. Ele deve estar aqui há mais tempo, pois deixou alguns livros-textos na sala (que é o meu quarto). Também deve ser muito organizado, pois afora os livros e um cobertor da British Airways (acredite se quiser, ele também roubou um), meu quarto está limpo. O banheiro também. Tem comida no armário da cozinha e a louça está toda lavada. A casa está bem abastecida de produtos de limpeza e higiene. Não toquei na porta do seu quarto. Estou esperando que ele chegue logo e me ajude um pouco com as coisas. Caso isso não aconteça, já passei meu endereço para a outra aluna da Unicamp que está aqui há dois dias, e pedi que ela me encontrasse assim que possível.

O apartamento não tem Internet e meu celular ainda não funcionava quando cheguei, o que me levou, logo que entrei no apartamento, a um breve momento de desespero intercambístico (o que estou fazendo aqui tenho que voltar imediatamente cadê minha mãe cadê meu pai eu vou morrer); mas então eu lembrei que tinha acabado de vir da universidade na região Norte da cidade, cheia de cafés e de Wi-Fi. Meu celular voltou a funcionar no caminho pra lá e falei com minha família pela primeira vez desde Guarulhos. Fiz amizade com os donos de um café pequeno e bem localizado. Uma pena que (pra variar) é bem caro. Eu só precisava mesmo dos 20 minutos de Internet. Copenhague está começando a ficar interessante de novo.

(Com um sobressalto, ouço tosse e o ranger de móveis no quarto fechado).

21h20, escurecendo enfim. Nos falamos depois.

Abraços,

João G.

PS.: agora que vou conseguir enviar a carta, são 11:20 do dia seguinte. O barulho no quarto foi um alarme falso: tinha esquecido de que ouvimos todos os vizinhos  e o elevador ao mesmo tempo num apartamento. Fiquei esperando meu asiático colega aparecer e percebi que estava exausto. Acordei hoje, sozinho ainda, e estou passeando pela cidade. Assim que puder, mando mais notícias.

Em resposta a: Thomaz/João #15

João/Stefano #1

Querido Stefano,

Recebi ontem um e-mail da Universidade de Copenhague (r)estabelecendo o prazo de resposta à minha inscrição no curso entre junho e julho. Assim, acredito que me faria bem deixar de lado essa questão, concentrar-me nas demais obrigações que têm seus prazos em junho (isto é, o semestre) e só depois disso me lembrar de qualquer chance de que eu vá para a Dinamarca.

Mas como nem sempre temos disciplina para escolher o que nos faria bem, quero relembrar e sonhar com você os nossos roteiros de viagem pela Europa. Pode ser que nenhum de nós cruze o Atlântico no próximo semestre, pode ser que só um de nós o faça, ou — Deus queira — pode ser que viajemos juntos. Em qualquer caso, é bom termos em mente o que faremos quando quer que venhamos a pisar no Velho Mundo.

Há dois lugares que posso classificar como “essenciais” no caso de a viagem ocorrer. Ei-los:

Poets’ Corner

1) Preciso assistir à cerimônia de entrega da estátua em homenagem a C. S. Lewis no Poets’ Corner da Abadia de Westminster. O aniversário de cinquenta anos de seu falecimento, quando a entrega deve ocorrer, é no dia 22 de novembro. Poderíamos, então, marcar a nossa viagem para a Bretanha para o final desse mês. Há também certa movimentação em Belfast (cidade natal do escritor) para que haja algum tipo de homenagem. Você tem algum plano impreterível nessa data?

2) “Há algo de podre no Reino da Dinamarca.” A corte de Hamlet ficava no castelo de Elsinore. O castelo verdadeiro de Helsingor, inspiração para o cenário da história, fica na costa nordeste da ilha da Zelândia, onde também fica Copenhague. Não podemos perder.

Citei esse dois lugares quase que só como desculpa para ouvir seus comentários sobre as cidades que você deseja visitar. Você, que conhece o lugar presencialmente, o que tem a dizer?

Abraços,

João G.

P.S.: Você sabe que é o fundador desta ideia, não é? Você foi o primeiro a enviar cartas de verdade e relativamente extensas aos seus amigos (no fim do ano passado). Posso dizer, no momento, que os seus desafios continuam me movendo adiante, e que aquilo já me ajudou imensamente.