Thomaz/João #27

João Guilherme,

Sua última carta me provocou uma espécie de vertigem. Vocês nos conduziu voando até o fim do trampolim mas interrompeu o fluxo de suas palavras no momento do salto. Aquilo que você chamou de lacunas nos textos fundadores também se encontra na sua carta. Tentarei, então, construir uma civilização nessas lacunas.

Começo falando sobre esse sentimento de ruína presente no seu parágrafo sobre a glória Viking. Ele me lembrou aquele gênero poético chamado de Ubi Sunt, que tem praticantes tão ilustres quanto o poeta francês François Villon e exemplos tão conhecidos quanto a canção universitária que começa pelos versos célebres Gaudeamos igitur iuuenes dum sumus.

Esse gênero teve vida fértil, não por acaso, na poesia anglo-saxônica, e Tolkien “reciclou” um de seus exemplares, The Wanderer, sobre o qual Borges fala no seu Curso de Literatura Inglesa, para transformá-lo em uma canção rohirrim que versa belamente sobre a passagem do tempo e o desaparecimento das coisas passadas.

Where now the horse and the rider? Where is the horn that was blowing?
Where is the helm and the hauberk, and the bright hair flowing?
Where is the hand on the harpstring, and the red fire glowing?
Where is the sping and the harvest and the tall corn growing?
They have passed like rain on the mountain, like a wind in the meadow;
The days have gone down in the West behind the hills into shadow.
Who shall gather the smoke of the dead wood burning,
Or behold the flowing years from the Sea returning?

O cancioneiro popular brasileiro, a seu modo, também se aproveita dessa estrutura, indicando porém identidades flutuantes para o “anjo exterminador” responsável pela efemeridade das coisas.

Cadê o toucinho que estava aqui? O gato comeu.
Cadê o gato? Está no mato.
Cadê o mato? O fogo queimou.
Cadê o fogo? A água apagou.
Cadê a água? O boi bebeu.
Cadê o boi? Está amassando o trigo.
Cadê o trigo? A galinha espalhou.
Cadê a galinha? Foi botar o ovo.
Cadê o ovo? O padre bebeu.
Cadê o padre? Foi rezar a missa.
Cadê a missa? Já se acabou.
Cadê o pessoal que estava na missa?
Passou por aqui, por aqui e por aqui…

Tudo o que passa dá lugar a algo novo. Ah, a sabedoria popular…

Pensando nisso, não posso evitar de encarar um pouco criticamente meu próprio olhar pregresso sobre o “fim” da nossa civilização. Lendo recentemente a História da Literatura Ocidental do Carpeaux (uma leitura que deve durar anos, se é que acabará um dia), deparei-me com um texto sobre a relação entre nossa civilização e a Antiguidade. Ele lembra, nesse texto, que os intelectuais de todas as épocas afirmaram o fim do mundo. Penso naquela imagem de Adorno sobre o “grande hotel abismo”, um coletivo de intelectuais e acadêmicos “hospedados” à margem do abismo (como a pessoa que dança no fragmento de Kierkegaard), observando com tristeza e algum desprezo o “fim do mundo”.

No mesmo texto, Carpeaux demonstra como, entre a Antiguidade propriamente dita e a modernidade, nossa civilização passou por uma serie de renascenças (praticamente uma a cada século) nas quais se tentava resgatar o ideal da Antiguidade Clássica, mas que na verdade se tratava de buscar aquilo que era próprio ao espírito de cada época.

Acredito que esse processo descreve um pouco melhor o fluxo humano através do tempo. Gaudeamus igitur dum senes sumus.

Thomaz

Em resposta a João/Thomaz #26

Stefano/João #9

Sorbonne, 24.09.13

João,

Eu me questiono também o motivo de ter saído. Curiosamente, quando vim, parecia bastante claro, mas o lento correr dos dias tem me mostrado que isso é exílio e não intercâmbio. Talvez eu ande meio triste e isso impregne na minha roupa e na minha escrita de uma forma muito além do que eu possa prever, dado mesmo a minha inclinação para o exagero, o sentimentalismo e o drama. Mas reitero: isso é exílio. Não necessariamente político e doloroso como os ocorridos em épocas de guerra e de ditadura, mas não é definitivamente o oposto. Não sei, mas essa cidade não me encanta. É claro que, por fotos, me encantava e, obviamente, existe deslumbramento nos pontos turísticos. É claro. Mas não há encantamento. E parece-me curioso isso: não estar apaixonado no começo e passar pelo processo de desapego e saudade ao longo dos meses – até o ponto de suplicar a volta para casa.

Não chego ainda a suplicar a volta, mas olho para as pessoas que passam ao meu redor em bandos e penso: eu não sou parte de tudo isso. Eu, por outro lado, sinto-me dentro de uma esfera nauseante e claustrofóbica em que existe espaço para mim – e somente. Sinto a despatriação de mim mesmo ocorrendo lentamente. Aqui, meu caro, eu sou triste. Eu não falo alto, eu não sorrio fácil e nem sequer sei fazer piada. Aqui eu sou tímido, almoço sozinho e as poucas vezes que tenho alguém comigo geralmente não sei ser menos gentil que um livro de idiomas ensina e mais espontâneo do que uma fita cassete pronta a recomeçar o curso intensivo de verão. Mas isso me assombra: aqui, eu sou triste. Eu tenho olheiras, como pouco, falo pouco e uso fones de ouvido. Eu nunca usei fones de ouvido como forma de espantar pessoas, mas aqui eu uso. Aqui eu ando constantemente sozinho, ouvindo estranhos e desenhando rostos no metrô. Escrevo pouco e sinto saudade o tempo todo – a ponto de chorar em museu.

Um amigo meu, que aqui mora faz anos, me perguntou se Paris já havia sugado as minhas energias. Eu achei curioso a princípio. Respondi (e um pouco mentindo) que Paris ainda me fazia bem. Ele me disse algo, então, que agora entendo: é melhor que você seja turista sempre, que não more no centro e só passe por Paris todos os dias. É melhor que sua casa seja em outro lugar, talvez assim você tenha uma impressão menos angustiante dessa cidade. Paris é apertada, quieta, triste, cinza. Paris é linda também, mas acho curioso que as únicas cores que eu veja estejam nas calças compridas, nos macarons e nas flores dos jardins. O amor se esfriará no coração de muitos, penso muito e constantemente. Paris é, de fato, uma cidade para ser contemplada, visitada, deixada. A permanência fará, hora ou outra, na feição os lábios tristes de alguém que lê e apenas lê nos metrôs. Ninguém se apaixona quando novas pessoas entram no vagão. Contempla-se apenas.

E em mais um dia de respostas cinzas, recebi pelo correio seu cartão postal. No meio do meu silêncio reiterado, fiquei brincando de olhar o céu pelo buraco do papel. E percebi com espanto: por trás de tudo,o por-do-sol ainda não é cinza. O dedo da última carta, pra mim, aponta para um lugar em que o cinza é só uma lembrança de um exílio. Ou de um Exílio. É, aqui eu sou triste.

Com açúcar, com afeto,
S.

Thomaz/João #25

Querido João,

Finalmente dei início ao meu projeto de longa data de ler a Bíblia do início ao fim. Tenho-o executado sem pressa, em paralelo a outras leituras “seculares”. Estou utilizando a Bíblia do Peregrino, uma fantástica edição de estudo belamente traduzida e anotada, e após cada livro  leio o capítulo sobre ele no Guia Literário da Bíblia, organizado por Robert Alter e Frank Kermode. Terminei o Gênesis no domingo – como disse, estou sem pressa.

Como já havia dito na última carta, também estava lendo a Ilíada, em uma tradução também muito boa, e também acabo de concluir a leitura. Não pude deixar de notar diversos paralelos entre as duas obras. É clássico o ensaio de Erich Auerbach comparando a narrativa do Antigo Testamento a Homero (“A Cicatriz de Ulisses”, o primeiro capítulo de Mimesis, as you may remeber), ensaio que não li e ao qual não pretendo me equiparar. No entanto, gostaria de tecer alguns comentários.

A primeira coisa que salta à vista são alguns paralelismos formais – pontuais, talvez, mas muito interessantes. O primeiro e mais óbvio deles são as repetições de fórmulas, situações e cenas, marca provável de uma herança oral em dois textos que, como seu aparato de notas e comentários, o qual não sou capaz de reproduzir aqui, provou muito bem, dependem no entanto fortemente da escrita. O segundo, muito interessante, e também de raiz oral, é a construção circular de cenas, que a “Introdução ao Antigo Testamento” (de Robert Alter) do Guia Literário chama de “repetição de reatamento”, e a “Introdução” (de Peter Jones) da Ilíada de “composição anular”, isto é, uma proposição inicial de ação interrompida parenteticamente e retomada para dar prosseguimento à narrativa. Tomo os exemplos das introduções (grifos meus). Na Ilíada:

Não passou despercebido ao filho de Atreu, Menelau dileto de Ares,/ que pelos Troianos fora Pátroclo subjugado na refrega./ Atravessou as filas dianteiras armado de bronze cintilante/ e pôs-se plantão por cima dele, como uma vaca que deu à luz/ pela primeira vez, junto a sua vitela com lamentosos mugidos:/ assim em volta de Pátroclo se colocou o loiro Menelau. (XVII.1-6)

E na Bíblia (peço perdão por não ser um exemplo do Gênesis, mas não tenho como procurá-los agora):

Então todas as tribos de Israel vieram ter com Davi em Hebrom e disseram: “Vê! Nós tomos dos teus ossos e da tua carne. Já antes, quando Saul reinava sobre nós, eras tu o líder de Israel na batalha. E o Senhor te disse: ‘És tu que apascentarás o meu povo Israel e és tu que serás chefe de Israel'”. Todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei, em Hebrom, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebrom, na presença de Iahweh, e eles ungiram Davi rei em Israel. (II Samuel 5, 1-3)

Esse recurso permite incluir informações, desenvolver imagens e até mesmo reelaborar ou refocar a ação, como no caso de II Samuel, em que há uma evolução entre tribos de Israel/Davi e anciãos de Israel/rei.

Embora a poesia grega caminhe no sentido da elaboração e a hebraica no sentido da concisão, ainda assim é possível apontar ainda um outro paralelo formal no aspecto “objetivo” (feitas todas as ressalvas a esse termo) de ambos os textos. Com frequência na Ilíada, e quase sempre no Gênesis, o narrador não emite juízos sobre seus personagens. É com um estilo direto que se narra a ação, e o que na Ilíada pode muitas vez ser confundido com um juízo aparece somente em falas de personagens ou em epítetos e símiles que mais parecem a intromissão da voz de um personagem junto à voz do narrador.

Gostaria ainda de apontar uma última coincidência, que me permita avançar para o espectro temático-ideológico dos dois textos. Tanto a Ilíada quanto o Gênesis são obcecados por genealogias! As listas de antepassados e de gerações abundam. No épico grego, a genealogia invocada por cada personagem pretende reafirmar a nobreza dele, e explicar as relações entre os diferentes “atores” das situações. No caso do texto bíblico, as listas de gerações parecem, como é sugerido por J.P. Fokkelman, que escreve o ensaio sobre o Gênesis no Guia Literário, manter em movimento e levar adiante a ordem de Deus para que seu povo seja fecundo, multiplique-se e oculpe a terra. Trata-se de uma elaboração formal desse princípio de fecundidade, herança, descendência e, enfim, fraternidade.

Com efeito, a fraternidade – isto é, as relações entre os homens, que fundam as sociedades, as culturas, as civilizações – é o assunto principal do Gênesis – sob a luz da ação Divina -, ao menos no ciclo patriarcal que se segue ao Dilúvio. E também o é na Ilíada, embora sob uma lente muito mais focada, que observa de perto uns poucos personagens – Aquiles, Agamêmnon, Pátroclo, Heitor – e as dinâmicas entre eles.

No início do canto VI da Ilíada, Diomedes, filhou de Tideu, que naquele momento é o mais valoroso dos guerreiros gregos em batalha (pois Aquiles se retirou irado) depara-se com Glauco, aliado troiano da Lícia, e lhe pergunta: “Quem és tu, valentão, dentre os homens mortais?” O que ele deseja é saber se o oponente é um homem, e não um deus, contra quem não poderia lutar. A resposta de Glauco é clássica:

Tidida magnânimo, por que queres saber da minha linhagem?/ Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens./ Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço/ faz nascer outras, quando sobrevem a estação da primavera:/ assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir. (VI.145-149)

Ainda assim, ele prossegue com a narração das aventuras de seus antepassados mais imediatos, e com isso ele e Diomedes descobrem-se parentes, desistem de lutar e trocam presentes – para depois irem matar algum outro soldado que lhes seja menos aparentado.  É uma cena única no poema, e muito curiosa. Um momento em que a linhagem tem um efeito pacificador nos homens, tão afeitos aos laços de sangue.

No entato, a violência segue. A Ilíada, primeira obra da literatura ocidental, é também a primeira história de vingança. Muito menos do que a glória, objetivo típico dos nobres gregos, o que motiva as ações de Aquiles no clímax do épico é o ódio provocado nele pela morte de Pátroclo. Com um ira verdadeiramente terrível, ele massacra os soldados troianos a torto e a direito, e consegue enfim matar Heitor. Mas não é suficiente. Destroçado, ainda, pela morte de seu melhor amigo, ele arrasta o corpo de Heitor ao redor do túmulo de Pátroclo, planeja entregá-lo aos cães e, no funeral do companheiro, sacrifica doze jovens troianos.

As cenas que antecedem o funeral são de uma pungência extraordinária. No início do Canto XXIII, o fantasma de Pátroclo visita Aquiles para pedir que ele o sepulte logo, pois de outro modo não poderá atravessa o rio que leva ao mundo dos mortos. Enquanto lia essa cena, no silêncio de uma sala do Fisk, em uma terça à noite, fui tomado por uma melancolia enorme. A Ilíada é também a primeira tragédia – a tragédia de um homem que desejava a glória, mas quando perde aquele que mais amava, por sua própria teimosia, é machucado para além de qualquer remédio. Estive pensando esses dias na ferida que o Rei dos Bruxos de Angmar produz em Frodo, e no efeito duradouro, insuperável, dela. O hobbit precisa ir para o Oeste por causa dela, pois algumas feridas simplesmente não saram, simplesmente não podem ser esquecidas.

No Gênesis, por outro lado (já no Gênesis!), um dos motivos principais é o perdão. Esaú perdoa Jacó, José perdoa seus irmãos, e assim se conclui a primeira parte de uma história que sem dúvida ainda apresentará muita violência e sofrimento – mas, para aqueles personagens, foi possível ir além das mágoas, ir além do ato de agressão contra o Outro que caracteriza o homem desde que Adão se evade da responsabilidade por seus atos acusando Eva, e perdoar, reconstruir a fraternidade.  Algo semelhante acontece, por fim, no Canto XXIV da Ilíada, quando Príamo visita na calada da noite a cabana de Aquiles para pedir de volta o corpo do filho. Príamo enxerga em Aquiles alguém como o filho, e Aquiles enxerga em Príamo alguém como o pai. A partir desse ato de empatia, de enxergar a si próprio no outro, é possível parar a violência, retomar, nem que seja por um instante, a paz.

Visitando esses textos fundadores, sinto que tenho acesso a algo de essencial. Se eles estão no marco inicial de nossa civilização e cultura, talvez seja bom voltar a eles, nesse momento em que nossa civilização e cultura se aproximam do fim, e buscar alguma espécie de âmago que possa nos ensinar a produzir, a partir das ruínas, o novo.

Um abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #24

 

Thomaz/João #23

Caro João,

Fico muito feliz de ler essas suas cartas. Você tem conseguido transformar suas experiências pessoais em experiências de leitura. Acredito que mesmo quem não te conheça, ao ler seus relatos, se sentiria afetado pela força deles. Nessa última carta, de modo especial, fiquei impressionado com a analogia entre o Louisiana MoMA e o festival de Jazz. Momentos de assombro para você se tornam momentos de assombro para o leitor.

Não posso deixar de fazer uma relação com os símiles de Homero (sim) na Ilíada, que estou lendo esses dias na tradução de Frederico Lourenço, um português. A tradução é muito especial porque mantém o caráter oral, performático, repetitivo e caudaloso da poesia homérica. É possível enxergar o texto grego (ao menos para quem tem alguma familiaridade com a língua) através da tradução. Creio que este é o maior mérito de uma tradução. De certo modo, é isso também que você tem feito em suas cartas: traduzido. É possível enxergar suas experiências através do relato.

Mas começava a falar dos símiles: segundo a introdução, há mais de trezentos deles ao longo da obra (e, acredite se quiser, 666 falas de personagens). Alguns são verdadeiramente impressionantes.

Mas o terror não se apoderou de Idomeneu como de um rapaz

mimado, mas estacou como um javali das montanhas, confiante

na sua força, que aguenta a chusma de homens que contra ele

avança em local ermo; o dorso se lhe eriça em cima

e como fogo lhe brilham os olhos; e afia as presas

ansioso por dali repulsar homens e cães –

assim permaneceu firme Idomeneu, famoso pela sua lança,

sem arredar pé, à investida de Eneias.

(XIII. 470 – 7)

A descrição que você fez das paragens nórdicas coincidiu com um post da Carol Bensimon no Blog da Companhia das Letras sobre a América profunda. Acredito que existem muitas semelhanças entre esses dois ambientes. Não só na paisagem, mas sobretudo no status mítico adquirido através da arte. E ainda mais – embaralho-me para conseguir expressá-lo – no caráter de lugar desses lugares. No peso que eles têm enquanto paisagem, enquanto lugares de fato. A própria Carol cita Rebecca Solnit a esse respeito:

Perhaps it’s that you can’t go back in time, but you can return to the scenes of a love, of a crime, of happiness, and of a fatal decision; the places are what remain, are what you can possess, are what is immortal. They become the tangible landscape of memory, the places that made you, and in some way you too become them. They are what you can possess and what in the end possesses you.

[Talvez você não possa voltar no tempo, mas possa retornar aos cenários de um amor, de um crime, de felicidade, de uma decisão fatal; os lugares são o que permanece, são o que você pode possuir, o que há de imortal. Eles se tornam a paisagem tangível da memórias, os lugares que te fizeram, e de alguma maneira você se transforma neles. Eles são o que você pode possuir e o que, no fim, possui você.]

Proust tange o mesmo tema, embora seu balanço de forças possa ser diferente.

Les lieux que nous avons connus n’appartiennent pas qu’au monde de l’espace où nous les situons pour plus de facilité. Ils n’étaient qu’une mince tranche au milieu d’impressions contiguës qui formaient notre vie d’alors; le souvenir d’une certaine image n’est que le regret d’un certain instant; et les maisons, les routes, les avenues, sont fugitives, hélas, comme les années.

[Os lugares que conhecemos não pertencem sequer ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não passam de uma fina fatia no meio de impressões contíguas que formavam nossa vida de então; a lembrança de uma certa imagem não é senão o lamento por um certo instante; e as casas, as ruas, as avenidas, são fugitivas, infelizmente, como os anos.]

O espaço e seus sinais tem me fascinado.

Para terminar, uma música que você deve estar ouvindo já por aí, mas ainda assim se conjuga à perfeição com esta carta.


Um abraço,

Thomaz

øøøøøøøøøø

Em resposta a : João/Thomaz #22

Thomaz/João #21

Caro Johannes,

Fiquei curioso a respeito dessa introdução à História da Dinamarca, e ela me lembrou, particularmente, da Gesta Danorum, a obra daquele Saxo Grammaticus – que a Wikipedia me diz ter sido secretário desse tal Bispo Absalão – que apresentou a Shakespeare a história dos escândalos familiares do príncipe Amleto.  Se descobrir mais sobre isso, me conte.

Fale-me mais, também, sobre as matérias, as aulas, os assuntos, assim vou aprendendo um pouquinho também. E é claro que você vai me emprestar esses “binders” (?) quando voltar. Todos os textos que vocês precisam nas matérias estão contidos neles? Muito interessante o modelo. Uma carga de leitura calculada…

O que mais me chamou a atenção foi o título da matéria sobre Kierkegaard: Søren Kierkegaard and the Challenge of Existence. O desafio da existência, de fato. Será que a Universidade propõe essa matéria para intercambistas atribulados de propósito?

(Por sinal, esse ø é incrível. Vou passar a usá-lo como sinal de pontuação nessas cartas.)

Lembrei que você levou as Elegias de Duíno, do Rilke, para a Dinamarca. Muito apropriado. Embora esses poemas tenham sido escritos na Itália, Rilke era habitante dessas paisagens espirituais do norte. Portanto, nada melhor que esse cenário para voltar aos poemas dele e deixar-se assombrar diante do Belo-que-também-é-Terrível que Rilke nos apresenta.

Como estamos falando de existencialismo, de Kierkegaard, de Rilke e poesia, resolvi te mandar dessa vez uma música bem conhecida por você, que trata sobre o “mistério do planeta” de uma maneira cheia de graça e leveza.

Vou mostrando como sou
E vou sendo como posso,
Jogando meu corpo no mundo,
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto

E cara, LEGO!

Um abraço,

Thomaz

øøøøøøøøøø

Em resposta a: João/Thomaz #20

Stefano/João #7

(ou “Sou ruim com encontros marcados e por isso demorei tanto para responder”)

Cachan, 6 de setembro de 2013.

Jean,

Sua carta me intriga, mas eu gosto dela, do fato de ter somente uma foto e ser, assim, um relato de uma vida toda. Vida talvez sua uma hipérbole descabida, mas de um recomeço de tempo pelo qual passamos. Já bem acomodados, aqui estamos em solo europeu. Curioso que a nossa experimentação dos lugares é algo completamente novo, porém a existência dos signos é completamente superior à nossa existência. Por isso, eu retomo a foto: a estátua é uma existência por si própria, objetivada no mundo, mas nós a possuímos. Nós é um outro impropério, quem a possui é você, mas a atitude de descoberta compete a ambos – até o idioma é outra dessas jornadas ardilosas pela qual você está se aventurando.

Somos parte das grandes navegações modernas que, na verdade, vão em busca de conhecimento, e não mais necessariamente de ouro e especiarias. Quer dizer, reflito agora que toda expedição tem um caráter de exploração e esgotamento do outro: vou até uma terra distante parasitar o conhecimento, a riqueza, a mão-de-obra, as praias, os monumentos, os museus. Um desejo imperialista que se mantém, talvez, que nos constitui – quem sabe. Lembra que apontaram a minha resistência em moralizar na defesa de tese? Pois bem, cá estou eu transformando em hipótese o que poderia ser conjectura.

Mas, de todo e qualquer modo, a estátua aponta para um dos pontos cardeais altivas. A despeito da orientação ser sempre o norte, penso que ir já é um aventurar-se bastante grande. Ir para o norte é o que as caravelas faziam, hoje nós vamos. Percorremos. Ganhamos território e expandimos. Cada um para um ponto diferente, na distância que impõe ao coração a necessidade de unir. Acho que é isso, porque a estátua é de níquel. E metais não sentem frio, nem medo, os sentimentos que um bom navegador não se deve permitir sentir. A despeito disso, nós somos humanos, graças a Deus – com a possibilidade de ter raízes e sentir saudades, apesar de gelidamente apontarmos.

Deixo-lhe a réplica do desafio fotográfico como pergunta.

20130906-131955.jpg

O que é que vês?

Com açúcar, com afeto,
S.

Em resposta a: João/Stefano #6

Thomaz/João #19

Caro João,

As lacunas nas suas cartas me deixaram muito curioso. Parecia um daqueles textos censurados, cheios de marca-texto preto cobrindo as linhas. Sei que foi um ardil de último minuto para não deixar o post quilométrico, mas o efeito é um pouco assombroso.

As fotos estão muito boas! Fiquei impressionado com as instalações da Universidade. Esperava por algo mais medieval, mas essa modernidade em aço e vidro também é bem característica, como você disse. Mas o melhor mesmo foi o Roland Bar. Que nome! Quero ter um bar com esse nome – ou um nome desses – ainda na minha vida. Por favor mande fotos! Avise quando as colocar no post antigo, ou coloque numa carta nova.

A cerimônia de iniciação também precisaria ter sido registrada em vídeo. Minha imaginação mal alcança a situação. Músicas tradicionais em latim e dinamarquês! Togas! Apertos de mão! Juramentos de obediência! Senhor!… Por sinal, essa tradição das músicas universitárias na Europa é muito bacana, e infelizmente por aqui só teve dois frutos: gritos de guerra de olimpíadas universitárias (“CHUPA MEDICINA”, etc.) e o “Pa-ra-béns-a-vo-cê”.

Fico feliz de ver que você já fez amigos por aí. São essas amizades, afinal, que vão te dar uma força com os perrengues, as dificuldades, os bodes – que não estão acontecendo porque você ainda está começando sua vida por aí e há muito a resolver, mas porque eles aparecem sempre mesmo, em todas as situações da nossa vida (talvez por estar sozinho, o sentimento de desamparo e aporia seja maior às vezes, e aí é que entram os amigos).  Essa disputa entre você e a Dinamarca será um jogo permanente – mas é sempre um prazer jogar.

Mesmo com toda a fama, com toda a brahma
Com toda a cama, com toda a lama
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa chama

Deixa, que essa fase é passageira, amanhã será melhor
E você vai ver que a cidade inteira seu samba sabe de cor

Abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #18

 

Thomaz/João #17

Pindorama, Agosto de 2013

Meu caro amigo,

Quando me aproximava do final  da sua carta, não pude deixar de pensar (desculpe-me): “famous last words“… Considerando que a tétrica sensação veio depois da atribulada narração de suas peripécias picarescas pelas calçadas de Copenhagen, sinto que essa viagem já começa a reunir material suficiente para a redação posterior de um desses romances semi-auto-biográficos com a estrutura de uma comédia de erros (desculpe-me outra vez) ou de uma verdadeira odisséia de desencontros. El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha e Sancho Pança. The History of the Adventures of Joseph Andrews and of his Friend Mr. Abraham Adams. As curiosas aventuras de Pudim e seu vizinho Atchim. O que também pode ser o nome de um livro infantil. Ok, agora chega.

Brincadeiras à parte, diante da quantidade de informação que você já passou adiante nessa primeira carta, fiquei pensando que talvez tenhamos que suspender o padrão carta-resposta-carta-resposta, pois você terá muito mais a dizer do que eu, e assim virão, talvez, João/Thomaz #18, João/Thomaz #19, João/Thomaz #20…

O viajante está sempre em contato com o novo, com novas experiências que ele mesmo precisa processar, no que a escrita com certeza ajuda bastante. Mas o que a pessoa que fica conta para quem partiu? Talvez em outros tempos coubesse mandar notícias da pátria, mas a internet tornou esse expediente obsoleto. Ainda temos os copyrights de nossas próprias vidas relativamente assegurados, o que abre espaço para contar sobre como as coisas vão conosco (caso o Obama não te conte antes, rs).

Pensando nisso, lembrei de duas canções em forma de carta. Numa delas, Meu caro amigo, Chico Buarque manda para Augusto Boal, que estava no exílio, notícias do Brasil.

Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita,
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita.

Na outra, Carta ao Tom/Carta do Tom, encontramos a mesma mistura de humor e melancolia.

Rua Nascimento Silva, cento e sete
Você ensinando pra Elizete
as canções de canção do amor demais
Lembra que tempo feliz, ai que saudade,
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz
Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
este Rio de amor que se perdeu
Mesmo a tristeza da gente era mais bela
e além disso se via da janela
Um cantinho de céu e o Redentor
É, meu amigo, só resta uma certeza,
é preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor.

Longing. Sentimentozinho definidor da nossa humanidade, né não? Acho que vou adotar essa de te enviar umas músicas da terrinha enquanto você estiver por aí. Quem sabe você não converte uns dinamarqueses para o culto dessa nossa imensa herança cultural?

Abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #16

Thomaz/João #15

Meu amigo,

O vídeo do Sebastião Salgado estava aqui nos meus favoritos desde o dia em que você me enviara, esperando para ser visto. Depois da sua carta, finalmente voltei a ele, tentando entender o que você desejava dizer. Aquilo que você resumiu como alienação da natureza e da arte, eu acredito, é um sentimento que fala a todo ser humano que volta o olhar para o abismo que existe entre nós e o mundo (e o mundo são os outros), abismo que tentamos superar através da linguagem.

Neste momento, enquanto escrevo, tento “superar através da linguagem” o sentimento que tomou conta de mim nestes dias de despedidas. Talvez superar não seja a melhor palavra. Talvez eu devesse falar em transformação, em transformar esse bloco sólido de sentimento dentro de mim em um fluxo mais natural…

Cada pessoa que parte deixa um buraco dentro da gente. Talvez em nenhum outro caso seja mais apropriado falar do vazio como algo que de fato existe. A ausência de alguém querido é algo que dá pra pegar nas mãos, observar de vários ângulos, sentir o peso que tem.

Você está indo para a Dinamarca. Quando paro para pensar longamente no assunto, uma espécie de dor feliz toma conta de mim. Quem diria que de estranhos conhecidos no ensino médio nos tornaríamos tão próximos? God has mysterious ways. Ele sempre inventa maneiras de aproximar as pessoas que precisam estar próximas, mesmo que depois elas precisem se tornar distantes. Você é um dos meus melhores amigos, e foi tão constante em minha vida nesses últimos anos que só agora me dou conta de que precisarei aprender a não contar mais com sua presença como algo dado. Que estas cartas possam cobrir a distância que nos separará.

A Júlia vai viver uma nova aventura em Portugal. De todos nós, ela é a que mais viajou, a que mais deixou-se levar pelo mundo, a encontrar pessoas e lugares. Ela é o tipo de pessoa que faz naturalmente aquilo que o navegador Amyr Klink diz que todo mundo deveria fazer: ir lá e conhecer os lugares dos quais só ouvimos falar, dar-se ao trabalho da viagem, experimentar diretamente o outro lugar. Tenho visto pouco a Ju nos últimos tempos, mas o mesmo pode ser dito de quase todo o nosso grupinho da faculdade. Mas quando a Ju aparece parece estar sempre de passagem. Um passarinho que passa voando e proporciona um sorriso antes de sumir.

O Stefano, talvez mais do que todos, vai embora pra ficar. Terá estudo, emprego e perspectivas de vida. Esse um ano do intercâmbio facilmente vai se converter em dois, em seis, em muitos. A presença constante dele em minha vida fará falta, mas ele segue um caminho que está traçado, vai no embalo de todo o seu talento, sua dedicação, seu esmero e diligência naquilo que faz. Ele já voa alto porque seu destino é o céu.

Meu amigo Léo também foi para a França. Ele estava morando longe de Campinas já há alguns anos, estudando em outra cidade. Se isso permitiu que nos acostumássemos com a distância, esse acostumar-se não será suficiente para desmontar a saudade, quando a extensão de sua ausência passar a meses.

Meu amigo João está indo para a Itália. É para ele um sonho antigo, e representa, nesse momento da vida dele, uma espécie de recomeço, um sopro de ar fresco, de céu azul e sol quente para que ele possa reavaliar a si mesmo e todos aqueles que lhe são caros. A vida vai seguindo e nos coloca, muitas vezes, em lugares que não imaginávamos. Cabe-nos descobrir a topografia dessas paisagens espirituais, cujo mapa não possuímos mas que precisamos, apesar disso, desbravar.

Meu amigo Felipe não vai sair do país, mas está se “mudando” para trabalhar em BH. Ao invés de ficar longe de uma só vez, durante um espaço bruto de tempo, sua ausência será aplicada em doses semanais, quinzenais, mensais. Ausências desse tipo são mitigadas pela perspectiva de uma “cura” mais iminente para a saudade, mas nem por isso deixam de ter sua cota de tristeza. O Felipe, como os outros, vai procurar a felicidade, a realização de sonhos e expectativas que, neste momento, não se encontram aqui.

Essa lista de ausências me fez lembrar do catálogo das naus na Ilíada. Homero canta com sua linguagem áurea os nomes de todos os povos que foram lutar em Tróia, e também de seus líderes. Os nomes dos homens que se lançaram ao mar em busca de um objetivo um pouco vago em uma terra distante. Me fez lembrar, também, da outra parte da história, quando esses homens tentam voltar para casa. O poeta grego Konstantinos Kaváfis, quase 3 mil anos depois de Homero, colocou em versos breves, diretos e comoventes o que significa uma viagem. Nas palavras de José Paulo Paes, um dos tradutores do poema para nossa língua:

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

No retorno, João, você saberá porque partiu.

Abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #14

Thomaz/João #13

Caro João,

Não vou me alongar no assunto “Breaking Bad”, visto que  tratei-o longamente num post do meu blog pessoal recentemente. Pontuo somente que o prazer, em Breaking Bad, depende em grande medida do fato de que Walt não é absolutamente mau, e que tudo de mau que ele faz tem um peso que é sempre muito sentido. A série jamais passa levianamente sobre a morte, por exemplo. Prova disso é a maneira como Walt absorve traços de todos aquele que ele mata. A morte é algo verdadeiramente tangível, cujo peso é recuperado em um mundo que não só a transformou em banal – a máfia, o tráfico, a violência de modo geral – como a esconde ou ignora e, portanto, em certa medida a esvazia.

Quanto ao seu sonho, é sempre assombroso observar as sugestões, o mistério, a construção narrativa dos sonhos. Os seus, pelo que você me conta, costumam ter uma qualidade muito particular, uma concisão tremenda, uma simplicidade magnética. Esse assunto dos sonhos é sempre intrigante pois eles (os sonhos) parecem ser a matriz mais básicas das narrativas, de um funcionando semelhante ao do mito. Daí, talvez, a igual força que sentimos ao redor dos mitos.

Mas vamos lá. Sua viagem para o Reino da Dinamarca se aproxima. Que pensamentos assomam sobre a sua fronte?

Um abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #12