Thomaz/João #5

Pudim,

Gostei muito do que você falou sobre as obras monumentais nas ciências humanas em relação às ciências da natureza. Achei a análise precisa. O colisor de hádrons é tão “inútil” como uma obra de doze volumes, mas é ao mesmo tempo infinitamente útil. Cabe-nos descobrir o que fazer com aquilo que aprendemos.

Quanto a Game of Thrones, peço perdão antecipadamente se me estender demais. A leitura que tenho feito do primeiro livro ao mesmo tempo em que assisto a terceira temporada me deu uma perspectiva interessante sobre a série que eu gostaria de desenvolver. Em primeiro lugar, destaco algo de que me convenço cada vez mais, ou seja, a pertinência de analisar criticamente QUALQUER LIVRO, não importa se pertencente ou não a alguma espécie de “cânone”. Vi uma vez no Twitter um fac-símile do programa de uma disciplina que David Foster Wallace ministrava. O programa estava cheio de “sub-literatura” e “literatura de gênero”,  mas fazia todo o sentido ali. O aparato crítico se aplica a qualquer obra, e pode servir para enxergar coisas muito interessantes.

Ao preto e branco, então: uma das coisas mais interessantes da série, para mim, está em como a nossa relação com os personagens não está definida em termos de vilões e mocinhos, mas de simpatias e antipatias. Os únicos “vilões”, poderia-se dizer, são os White Walkers, mas a ameaça deles é ainda tão remota que por vezes quase os esquecemos. Mesmo além da Muralha, o conflito mais importante é entre a Patrulha da Noite e os Selvagens. Ao sul dela, os Outros são ignorados.  Só o que importa, para nós leitores, são as ações dos personagens e o quanto eles se revelam.

No começo da história, temos antipatia pelos Lannister e simpatia pelos Stark, mas em nenhum momento isso se resume a uma questão de mocinhos e bandidos. Temos Tyrion entre os Lannister para que nos interessemos pelo destino da casa, e Sansa entre os Stark para que não queiramos que todos eles se dêem bem. Mas não é tão simples assim. Vamos percebendo como Sansa é uma criança cheia de ilusões, que depois se torna uma refém, e são suas atitudes a partir daí que nos farão reavaliá-la. Ao mesmo tempo, vemos como Tyrion pode ser tão orgulhoso quanto os irmãos, incapaz de misericórdia para com os que o prejudicam, e igualmente interessado no poder. Com o desenvolvimento da história, percebemos como Cersei está numa posição frágil, e que sua maior preocupação é com os filhos. Jaime é mais um apaixonado e um incompreendido, um homem orgulhoso que carrega uma culpa que não é sua. Se ele empurra Bran da janela, é “por amor”, mas quando ele é preso, humilhado e tem a mão cortada, ficamos pensando se ele não merece alguma compaixão.  Arya vai se tornando mais sombria, e sua maior motivação para continuar viva é a vingança. Theon mata os filhos do fazendeiro e, antes disso, “trai” a casa que o acolhera. Mas é possível falar em traição quando ele passou quase toda a vida como refém dos Stark?

Nenhum personagem é simplesmente “bom” ou “mau”. A mentira pode estar dos dois lados, assim como o assassinato. Contribui para isso a maneira como o livro é escrito, com cada capítulo narrado pelo ponto de vista de um personagem. Somos capazes de entender as motivações de cada um, por mais que não concordemos com elas.

Westeros é um mundo maquiavélico, como o nosso, e um mundo que Ned Stark não compreende. Uma das coisas mais interessantes de voltar ao primeiro livro é poder fazê-lo com um afastamento que uma primeira leitura (no meu caso, a “leitura” da série de TV) não permitia. Entramos na história com os olhos dos Stark, e só com o tempo, à medida que vamos entendendo melhor o mundo onde estamos, e observando a partir de outras perspectivas, é que temos a possibilidade de enxergar o enredo à distância.

E o que esse olhar revela é como a trama que motivou a guerra na qual se afundou Westeros foi motivada por uma farsa. Robert deseja que Ned seja a Mão do Rei porque a antiga mão, Jon Arryn, morreu. Cat recebe uma carta de Lysa, sua irmã e viúva de Jon Arryn, dizendo que o marido foi assassinado pelos Lannisters. Ned vai para o sul com isso em mente, e resolve investigar a morte do antecessor, o que gerará a intriga que resultará em sua morte e na Guerra dos Cinco Reis. O outro estopim é a captura de Tyrion por Catelyn, que acredita que o anão tentou matar Bran, segundo lhe indicou uma informação dada pelo Mindinho. Os dois, para usar um termo do livro, caminham sobre gelo fino, e agem motivados por informações veiculadas por terceiros, que futuramente se revelarão muito inadequadas.

A verdade é que Ned e Catelyn são caipiras na cidade grande. Eles não fazem a menor idéia de como se comportar na Capital, e nenhum dos dois deseja se envolver nas intrigas palacianas que, no entanto, são inescapáveis. Recusá-las não exclui sua existência, e motiva comportamentos que só podem ser chamados de “burros”. Dá raiva ver Ned agindo tão obtusamente em relação ao que acontece ao seu redor. Ele fala muito sobre “honra” e “dever”, mas o que realmente importa para ele é a família, os filhos e a vida que leva em Winterfell. Ele anseia por ela em todo momento. Só o que deseja é se livrar de Porto Real o mais rápido e o menos dolorosamente possível, a fim de voltar para o Norte. Essa cegueira egocêntrica, essa incapacidade de enxergar o bem comum é o que será sua ruína. Decapitado por traição, impedido de ver os filhos ou a mulher uma última vez, privado de um retorno ao Norte, suas ações desajeitadas ainda jogarão o Reino em uma guerra sangrenta que, com movimentos simples mas, a seus olhos, desonestos, talvez pudesse ter sido evitada.

Enxergar dessa maneira o personagem que, mais do que qualquer outro, é o herói do primeiro livro, revela o quanto Game of Thrones caminha em territórios bem diferentes de uma parcela considerável dos livros de fantasia. Ao invés de se assumir como herdeiro dos romances de cavalaria, George R. R. Martin opta por ser herdeiro do romance histórico, e de uma visão quase quixotesca do mundo que aqueles projetam. Porque, em Westeros, acreditar no mundo ilusório dos cavaleiros andantes gera guerra, carnificina e morte.

Um abraço,

Tuma

[Em resposta a: João/Thomaz #4]