Thomaz/João #7

João,

Sim. Um romance histórico de um mundo fantástico. Eis a melhor definição de Game of Thrones. Mais do que uma diferença de gênero, porém, entre a crônica e o poema épico, podemos falar numa diferença temporal. Westeros pode ser o futuro da Terra Média, em um momento em que os deuses parecem ter se afastado (e por isso se multiplicam) e os seres fantásticos (orcs, balrogs, dragões…) estão desaparecidos há tanto tempo que se transformaram em meras lendas. Penso na continuação de O Senhor dos Anéis que Tolkien esboçou,  The New Shadow, na qual o inimigo não é mais um espírito maligno, como Sauron, mas se torna definitivamente os outros homens. L’enfer sont les autres, n’est-ce pas? Lembro de ler um resumo dessa história, muito tempo atrás, e ter ficado com um gosto amargo na boca.

A aproximação com a diferença de gênero se daria pela questão do registro, do tipo de resposta a se dar a uma questão. Épocas diferentes dão respostas diferentes. Não só o pós-guerra (e pós-SEGUNDA-Guerra) exigia um livro de fantasia como o de Tolkien, como a Terceira Era da Terra Média o fazia. O Senhor dos Anéis não é um livro nosso, mas é o Livro Vermelho do Marco Ocidental escrito por Frodo para contar uma história que as pessoas precisavam ouvir.  Creio que essa é uma perspectiva interessante para pensar de que maneira certa fantasia moderna, ao menos a ambiciosa como a de Tolkien e Martin, herda um certo modus operandi ou um certo espírito da épica. As Crônicas de Gelo e Fogo, por sua vez, são um poema não só para o século XXI como o temos conhecido mas também para Westeros como o conhecemos. Uma grande exposição da tradição, da história e do funcionamento desse mundo complicado.

Tudo mais interessante porque Westeros parece ser uma nação que esqueceu a história. Nem a oral, dos selvagens e da Velha Ama, e nem a escrita das canções. Os detentores do conhecimento são meistres rigorosamente científicos, sem tempo para bobagens como dragões, cometas ou caminhantes brancos. Os detentores do poder nos Sete Reinos ignoram as ameaças que espreitam em suas sombras, tanto as naturais como as sobrenaturais. Robert e Ned nada sabem sobre política e poder e quase ninguém sabe coisa alguma sobre os Outros, para começar. Westeros é um mundo que clama desesperadamente por uma perspectiva desencantada da história, antes que seja tarde demais.

Interessante observar como os temas vão se elencando: a História, o Outro (seja ele homem ou “alienígena”) e, como você bem colocou, a Magia. Esse transtorno da realidade é ao mesmo tempo pura força da natureza, de uma natureza desconhecida mas ainda assim constituinte daquele mundo. A realidade que todas as manifestações da magia em Westeros transtornam é a construída por algumas décadas de estabilidade e uma memória curta demais. É muito preciosa uma conversa entre Meistre Luwin e Bran Stark, no final do primeiro livro, na qual o Meistre vai contando a história da, digamos, colonização de Westeros (e é impressionante como mesmo conhecendo todos os pormenores da história do continente ele dê tão pouco valor a eles). Cerca de doze mil anos atrás havia os Filhos da Floresta, que lutavam contra os Outros e adoravam os Antigos Deuses que moram nos represeiros. Vieram então atravessando um fio de terra sobre o mar estreito os Primeiros Homens, que dominaram os Filhos da Floresta mas terminaram por se unir a eles e passaram a adorar os mesmos deuses. Pouco mais de quatro mil anos depois, os Ândalos chegaram, trazendo a Fé dos Sete, derrubando os represeiros, caçando os Filhos da Floresta com o ardor do medo e estabelecendo definitivamente os Sete Reinos. Por fim, trezentos anos atrás, os Targaryen, fugindo da Antiga Valíria, subjugaram os reinos sob um só Domínio. Veja bem: trezentos anos atrás. Como é possível falar em rei de direito se toda história de Westeros é uma história de conquistas pela guerra? Como é possível ser tão seguro da estabilidade daquela realidade se pouco mais de cem anos antes os dragões ainda existiam? O que acontece com o povo e os governantes de Westeros à medida que tudo aquilo que eles inocentemente tomavam por tão caro e seguro vai se desintegrando?

Ou, para colocar de outro modo: o que acontece com um mundo que toma todas as histórias do passado por meras canções, fantasias de mentes menos capazes?

Aguardo sua resposta.

Thomaz

[Em resposta a: João/Thomaz #6]

João/Thomaz #6

Sr. Tuma,

Sim, a ausência de vilões e mocinhos e essa complexidade das antipatias e simpatias é uma das marcas fundamentais de Game of Thrones. E a relação do mundo da série com a fantasia realmente é algo a se pensar. Você o chamou de “quixotesco”, o que faz referência às ambições de alguns personagens pretensamente honradas e, em última análise, duvidosas que se esfacelam de encontro à impassibilidade do mundo real. Há apenas um detalhe que gostaria de contrastar em relação ao romance de Cervantes: o da fantasia.

Pois me parece que George R. R. Martin, em vez de se desviar da magia, ou de se concentrar no fracasso dos que nela acreditam (como de costume na ficção realista), lança-se ao movimento bastante kafkiano de evidenciar o transtorno agressivo da realidade em que a magia de fato consiste(iria). Essa é a perspectiva contrária à que você lançou sobre a série: em vez de um livro de fantasia que se faz herdeiro do romance histórico, vemos um romance histórico realista que trata de um mundo em que a magia realmente existe. É como se os “homens” da Terra-média começassem a falar palavrão, fazer sexo e registrar também os detalhes verdadeiramente humanos e inescapáveis de seu mundo: exatamente aquilo que não se cantava nos poemas dos elfos.

Pois os dragões realmente são feras incríveis, mas o que poderia ser mais violento do que exércitos de milhares ou uma cidade inteira queimados sob suas chamas? E o que poderia ser mais mórbido do que um exército de escravos que não sentem dor? Pense também em Bran e Jojen, que serão eternamente perturbados por visões de outros lugares e tempos, como se já não tivessem traumas suficientes. Ou nos feitos atribuídos a R’hllor, que, por fiéis e submissos que sejam seus seguidores, acabam por representar o caos do sobrenatural sob controle dos homens. Ou, ainda, na sociedade religiosa dos Homens Sem Rosto, que elimina a personalidade de seus membros para que sejam mais capazes de tirar vidas.

No final das contas, a volta da magia que está se encenando é também uma volta de tudo de perturbador, extremo e traumático que o mundo de Game of Thrones parece ter esquecido. Sob certo ponto de vista, a história de Martin é um novo jogo com as oscilações do fantástico; desta vez, com uma envergadura nunca antes vista, abarcando em sua volta toda a minúcia e atenção ao detalhe de um romance histórico.

Fraterno abraço,

João G.

[Em resposta a: Thomaz/João #5]

Thomaz/João #5

Pudim,

Gostei muito do que você falou sobre as obras monumentais nas ciências humanas em relação às ciências da natureza. Achei a análise precisa. O colisor de hádrons é tão “inútil” como uma obra de doze volumes, mas é ao mesmo tempo infinitamente útil. Cabe-nos descobrir o que fazer com aquilo que aprendemos.

Quanto a Game of Thrones, peço perdão antecipadamente se me estender demais. A leitura que tenho feito do primeiro livro ao mesmo tempo em que assisto a terceira temporada me deu uma perspectiva interessante sobre a série que eu gostaria de desenvolver. Em primeiro lugar, destaco algo de que me convenço cada vez mais, ou seja, a pertinência de analisar criticamente QUALQUER LIVRO, não importa se pertencente ou não a alguma espécie de “cânone”. Vi uma vez no Twitter um fac-símile do programa de uma disciplina que David Foster Wallace ministrava. O programa estava cheio de “sub-literatura” e “literatura de gênero”,  mas fazia todo o sentido ali. O aparato crítico se aplica a qualquer obra, e pode servir para enxergar coisas muito interessantes.

Ao preto e branco, então: uma das coisas mais interessantes da série, para mim, está em como a nossa relação com os personagens não está definida em termos de vilões e mocinhos, mas de simpatias e antipatias. Os únicos “vilões”, poderia-se dizer, são os White Walkers, mas a ameaça deles é ainda tão remota que por vezes quase os esquecemos. Mesmo além da Muralha, o conflito mais importante é entre a Patrulha da Noite e os Selvagens. Ao sul dela, os Outros são ignorados.  Só o que importa, para nós leitores, são as ações dos personagens e o quanto eles se revelam.

No começo da história, temos antipatia pelos Lannister e simpatia pelos Stark, mas em nenhum momento isso se resume a uma questão de mocinhos e bandidos. Temos Tyrion entre os Lannister para que nos interessemos pelo destino da casa, e Sansa entre os Stark para que não queiramos que todos eles se dêem bem. Mas não é tão simples assim. Vamos percebendo como Sansa é uma criança cheia de ilusões, que depois se torna uma refém, e são suas atitudes a partir daí que nos farão reavaliá-la. Ao mesmo tempo, vemos como Tyrion pode ser tão orgulhoso quanto os irmãos, incapaz de misericórdia para com os que o prejudicam, e igualmente interessado no poder. Com o desenvolvimento da história, percebemos como Cersei está numa posição frágil, e que sua maior preocupação é com os filhos. Jaime é mais um apaixonado e um incompreendido, um homem orgulhoso que carrega uma culpa que não é sua. Se ele empurra Bran da janela, é “por amor”, mas quando ele é preso, humilhado e tem a mão cortada, ficamos pensando se ele não merece alguma compaixão.  Arya vai se tornando mais sombria, e sua maior motivação para continuar viva é a vingança. Theon mata os filhos do fazendeiro e, antes disso, “trai” a casa que o acolhera. Mas é possível falar em traição quando ele passou quase toda a vida como refém dos Stark?

Nenhum personagem é simplesmente “bom” ou “mau”. A mentira pode estar dos dois lados, assim como o assassinato. Contribui para isso a maneira como o livro é escrito, com cada capítulo narrado pelo ponto de vista de um personagem. Somos capazes de entender as motivações de cada um, por mais que não concordemos com elas.

Westeros é um mundo maquiavélico, como o nosso, e um mundo que Ned Stark não compreende. Uma das coisas mais interessantes de voltar ao primeiro livro é poder fazê-lo com um afastamento que uma primeira leitura (no meu caso, a “leitura” da série de TV) não permitia. Entramos na história com os olhos dos Stark, e só com o tempo, à medida que vamos entendendo melhor o mundo onde estamos, e observando a partir de outras perspectivas, é que temos a possibilidade de enxergar o enredo à distância.

E o que esse olhar revela é como a trama que motivou a guerra na qual se afundou Westeros foi motivada por uma farsa. Robert deseja que Ned seja a Mão do Rei porque a antiga mão, Jon Arryn, morreu. Cat recebe uma carta de Lysa, sua irmã e viúva de Jon Arryn, dizendo que o marido foi assassinado pelos Lannisters. Ned vai para o sul com isso em mente, e resolve investigar a morte do antecessor, o que gerará a intriga que resultará em sua morte e na Guerra dos Cinco Reis. O outro estopim é a captura de Tyrion por Catelyn, que acredita que o anão tentou matar Bran, segundo lhe indicou uma informação dada pelo Mindinho. Os dois, para usar um termo do livro, caminham sobre gelo fino, e agem motivados por informações veiculadas por terceiros, que futuramente se revelarão muito inadequadas.

A verdade é que Ned e Catelyn são caipiras na cidade grande. Eles não fazem a menor idéia de como se comportar na Capital, e nenhum dos dois deseja se envolver nas intrigas palacianas que, no entanto, são inescapáveis. Recusá-las não exclui sua existência, e motiva comportamentos que só podem ser chamados de “burros”. Dá raiva ver Ned agindo tão obtusamente em relação ao que acontece ao seu redor. Ele fala muito sobre “honra” e “dever”, mas o que realmente importa para ele é a família, os filhos e a vida que leva em Winterfell. Ele anseia por ela em todo momento. Só o que deseja é se livrar de Porto Real o mais rápido e o menos dolorosamente possível, a fim de voltar para o Norte. Essa cegueira egocêntrica, essa incapacidade de enxergar o bem comum é o que será sua ruína. Decapitado por traição, impedido de ver os filhos ou a mulher uma última vez, privado de um retorno ao Norte, suas ações desajeitadas ainda jogarão o Reino em uma guerra sangrenta que, com movimentos simples mas, a seus olhos, desonestos, talvez pudesse ter sido evitada.

Enxergar dessa maneira o personagem que, mais do que qualquer outro, é o herói do primeiro livro, revela o quanto Game of Thrones caminha em territórios bem diferentes de uma parcela considerável dos livros de fantasia. Ao invés de se assumir como herdeiro dos romances de cavalaria, George R. R. Martin opta por ser herdeiro do romance histórico, e de uma visão quase quixotesca do mundo que aqueles projetam. Porque, em Westeros, acreditar no mundo ilusório dos cavaleiros andantes gera guerra, carnificina e morte.

Um abraço,

Tuma

[Em resposta a: João/Thomaz #4]

Thomaz/João #3

João,

Interessante isso que você falou a respeito de textos curtos sobre obras longas. Isso se insere naquela velha discussão sobre o “tamanho ideal” de uma obra de arte. Porque se as obras podem ser longas ou breves, porque a crítica também não poderia ser? Afinal, há valor tanto no fôlego quanto na concisão.

Acho que é o Frye (olha ele aí de novo) que comenta sobre análises formais de obras que acabam sendo muito mais longas do que as próprias obras. Acho esse um fenômeno curioso, independente de ser válido ou não. Por outro lado, não é raro encontrarmos por aí livros, filmes, séries de TV ou quadrinhos intermináveis, que emprestam todo um novo sentido ao dito latino “A arte é longa e a vida é breve” .

Quantas vezes, porém, não é possível se perder no vulto de um livro imenso, que nos traga irresistivelmente? Como é delicioso perder-se num romance cheio de gorduras, como uma picanha. Que graça teriam sem elas? O romance é a picanha da literatura – sim, Thomas Pynchon, meu quasi-xará e obsessão, estou olhando pra você. A própria digressividade tem o seu valor. O Frazer escreveu o The Golden Bough a partir de uma pesquisa muito simples e específica à primeira vista. Ele só queria entender um ritual de sucessão meio esquisito de sacerdotes de um templo de Diana próximo a uma lagoa no norte da Itália. Acabou escrevendo doze volumes. Percebendo que tinha ido um pouco longe demais, o Frazer condensou a obra para um tamanho mais palatável: 600 páginas. Vejo essa história como exemplo de um processo que aprendi a admirar: ao contrário de deparar-se com a vastidão do Universo e chamar a Terra de grão de areia – como parece ser a tendência mais recente -, tomar um grão de areia e ser capaz de ver, nele, a Terra. É o que o Proust faz, não é? Crescer de dentro. É construir uma catedral e fazê-la projetar a Criação. É perder-se num pasto que carece de fronteira… É aion, aquela palavra grega que denomina o tempo sem fim, a Eternidade.

Por outro ladro, a brevidade é o kairos, o instante oportuno, a epifania momentânea, a clareza repentina que, breve que é, logo desvanece. Brevity is the soul of wit, escreveu o britânico Shakespeare, e nada mais britânico do que esse wit, essa inteligência aguda e precisa que só a concisão permite. Antípodas a eles estão os Orientais, Chineses antes de tudo, cujo pensamento-língua-escrita (conjuntos que são), profundamente imagéticos, também nos atingem com a pressão de uma força imensa dirigida para uma área muito pequena. Porque concisão é isso, concentração, densidade, o que automaticamente exclui todas as tentativas que, disfarçadas pela brevidade, aspiram à concisão, enquanto são somente frouxas, preguiçosas, pouco refletidas, pouco tralhadas.

Assim o que é imenso pode iluminar o pequeno fazendo-o recuperar sua força que se ocultara nas elipses e omissões; e o que é breve pode iluminar o grande, condensando-o e permitindo ver até onde vai o seu alcance.

Pensava falar sobre essa questão do “preto no branco” e o que isso tem a ver com nossa amada série Game of Thrones, mas já me estendi o suficiente para um dia, e não desejo que minha carta entre (como já entrou a obra de George R.R. Martin) para os anais da História do breve e do longo. Deixemos esses pensamentos para depois.

Com isso me despeço, com saudações cordiais.

T.

[Em resposta a: João/Thomaz #2]