João/Stefano #10

Copenhague, 01/10/2013

Querido Stefano,

Sua última carta chegou carregada não só da melancolia regular do exílio, mas também de uma certa urgência, um clamor por socorro. Por isso, achei adequado te mandar alguns recados por outros meios antes de responder por aqui (porque estas respostas requerem uma certa elaboração e um certo tempo). Fizemos bem em nos comunicar dessa forma, porque eu também estou cheio das mesmas perguntas. Conversando assim, acabamos por descobrir algumas coisas juntos, que vou tentar recapitular e desenvolver um pouco aqui.

A verdade é que eu gostaria muito de te dar as respostas certas a esses dilemas. Mas eu não as tenho para mim mesmo. O que posso te oferecer são algumas perguntas. Nós sabemos o que as perguntas fazem conosco. Posso me ver, e te ver, passando a odiá-las, a desejar que elas não existissem. Mas elas estão aí e nós não podemos fazer muita coisa se la vie est absurde.

O que segue é a minha tentativa de ordená-las aqui numa sequência compreensível.

– A nossa entrada na faculdade do Brasil poderia também ser vista como um momento de abandono, de falência social. O que fez com que ela fosse o contrário disso? O que os amigos daqui têm de diferente (pior?) do que aqueles que nos eram desconhecidos quase quatro anos atrás?

– O que, de tudo aquilo que me impede de me sentir em casa aqui, é contornável?

– A (nossa) espiritualidade brota de algum lugar em específico ou ela simplesmente existe, independentemente da nossa vontade, reconhecimento ou consciência?

– Quando eu me (des)encanto com alguma coisa, quem ou o que despertou esse (des)encanto?

– (Essa partiu de você) será que algum dia resolveremos essas coisas?

Talvez eu tenha uma facilidade para lidar com a desesperadora inquietação que essas questões nos provocam porque eu sempre fui um ser falido socialmente. Durante os primeiros vinte anos da minha vida, eu não quis fazer nada a respeito da angústia de tentar conciliar meu bom senso e minhas incertezas imateriais com um ambiente evangélico bastante peculiar e crescentemente fundamentalista. Quando a conciliação me pareceu impossível e indigna, eu resolvi abandonar a minha igreja. Passados alguns meses, eu e meus amigos de infância percebemos, silenciosamente, que vai ser quase impossível evitar nossa alienação e estranhamento mútuos.

Minha despedida poderia ser a minha carta de condenação à solitária.

Queria te contar um pouco sobre uma das figuras que hoje mais me inspiram. Meu pai cresceu num ambiente incomparavelmente mais opressivo que o meu: e ainda pior, com escassos recursos materiais. Mas ele tinha um sonho e uma boa professora de primário. Contra o sistema de educação, contra muito bullying e contra as dificuldades e a competição que alguém que vem de uma família pobre do interior sempre tem que enfrentar, meu pai conseguiu ser forte e ir bastante longe na carreira com que sonhava.

E então, por causa de um problema no coração, ele teve que desistir de tudo.

Eu nunca entendi, mas sempre admirei, o fato de meu pai ter passado pelo menos os cinco anos seguintes sem algo estável em que se agarrar. E ainda assim ter conseguido recolher os cacos, recomeçar e dar uma existência digna a mim e aos meus irmãos.

Isso é um pouco da história do meu pai. Não posso esquecer da minha mãe, que nasceu numa família muito grande, e também com poucos recursos, e perdeu o pai com cinco anos. Às vezes, junto com as muitas irmãs, ela lembra do tempo em que tinham que pular refeições para conseguir levar algum dinheiro para casa.

Esta é uma carta bastante íntima e estou com medo de não fazer justiça às histórias e às pessoas sobre as quais estou falando. Eu morei mais de vinte anos com o meu pai e e com a minha mãe me acostumei com a presença deles sob o mesmo teto. Foi só quando vim pra cá e fiquei diante da minha própria sub-vida, da minha incapacidade de viver, que fui reler mentalmente as histórias que escrevi acima. Sob uma certa luz, podem parecer histórias tediosas. Mas a verdade é que eu sempre vivi na mesma casa que as duas pessoas mais incríveis do mundo.

Ou melhor, quatro.

Eu vi meu irmãozinho crescer diante dos meus olhos. Quando as coisas acontecem assim, temos um curso extensivo de como enxergar a preciosidade daquela vida e daquela pessoa. Nós nunca perdemos a oportunidade de dizer um ao outro que nos amamos; mas nem precisaríamos, porque já está no olhar. Eu sempre achei que minha relação com minha irmã mais velha era diferente, mais complicada, mais cheia de atritos e de pontos cegos.

Foi na tarde em que visitei os sítios arqueológicos que percebi que não era bem assim. Na volta a Copenhague, de súbito e aparentemente sem motivo algum, encontrei-me chorando de saudade da minha irmã. Só da minha irmã. E não só do tempo em que brincávamos nas nossas casinhas pequenas em Itu e Mogi-Guaçu, infinitas e belas como palácios reais, mas também de quando tínhamos que dividir o carro um mês atrás e de tudo que aconteceu no meio. Foi forte, verdadeiro e inesperado, e eu tive que esconder o rosto porque não conseguiria explicar o que estava acontecendo a quem perguntasse.

Tudo isso poderia transformar meus dias em melancolia e saudade, mas não tem sido assim. Copenhague sempre vai ter um lugar especial no meu coração, pois foi o lugar em que eu percebi que as minhas ideias anteriores sobre onde o valor do mundo reside sempre tinham sido estimativas pessimistas. Aqui, sozinho na companhia da minha própria mediocridade, vi que por toda a minha vida talvez não tenha sido metade do ser humano que cada um dos meus familiares é; mas que esse cenário não vai melhorar se eu não ajudar a mim mesmo.

Agora que já fui tão longe, não sei por que não dizer tudo. Eu acho que essa é a maior conquista que alcancei no último mês, quiçá em toda a viagem: aprender a enxergar a vida e a história nos olhos de cada um. Eu ainda estou esperando a resposta da minha permissão de residência, e passo os dias assombrado pela possibilidade um carimbo de rejeição na caixa de correio. Mas nem mesmo esse acontecimento eu poderia chamar de fracasso. Porque agora, diferentemente do joão de julho, este que vos fala não acredita mais em usar os reveses para justificar apatia e desânimo, mas sim em juntar os cacos e seguir adiante.

É irônico que a primeira carta meio auto-ajuda do blog parta de mim, o dono da vida mais patética dentre nós três. Eu poderia tentar fazer uma versão oposta da sua lista de contrastes: aqui eu saio no fim de semana, aqui eu olho nos olhos das pessoas quando converso com elas, e ouço de verdade suas histórias, mas acho que a lista pararia aí. Porque se você vier me visitar, acho que você vai ter a impressão de que encontrou o mesmo João Guilherme de antes, só um pouco mais resistente ao frio.

Eu também, como sempre, não sei fazer piada, me sinto meio estranho no meio do grupo e falo coisas óbvias e sem graça. Mas eu tive paciência, alguns outros tiveram paciência, e eu acabei fazendo amigos. E no final das contas, existia sim algo que valia a pena em mim, nas pessoas e na cidade. Eu não tenho nada a ensinar a alguém como você. Só acho, e aposto às cegas, que ainda tem muita coisa passando na frente dos seus olhos em Paris que você não está se permitindo, ou arriscando, enxergar. Talvez o problema não seja ir de um lugar pro outro ou fazer ou dizer a coisa certa mas sim acertar o foco.

Sinceramente como quase nunca antes,

João G.

P.S.: Gostei muito do cartão postal, você bem sabe. Já pensou bem no que me disse?

Em resposta a: Stefano/João #9

João/Thomaz #18

Querido Thomaz,

As músicas me fazem um bem danado, já que não pude trazer todas que queria para cá. Espero que você responda todas as minhas cartas, porque ajuda a matar as saudades. E não é tão fácil assim se informar sobre o Brasil aqui. Além disso, me parece que o seu semestre está um pouco mais interessante na faculdade desta vez. Se puder me falar sobre essas coisas, ficarei imensamente grato.

Quase todos os últimos dias te escrevi uma carta. Ontem escrevi uma pela sexta e pela quinta. Pra não ficar muita coisa, selecionei as partes mais relevantes das três cartas e fiz esse resumo da semana. Veja só.

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28/08/13, quarta-feira, por volta de 1 da manhã (lembre-se de subtrair 5 horas para achar a hora no Brasil):

Querido Thomaz,

Ainda não vi sua resposta, mas estou escrevendo porque preciso escrever, de verdade.

Senti o choque cultural com muita força hoje. […]

Isso foi de manhã. São 1:16 agora. Às 13:00, irão se completar 48 horas que cheguei a Copenhague. Quando foi que as horas começaram a passar tão devagar?

[…]

Nessa situação, abri o “Study Abroad Guide” da universidade na seção “Culture Shock”. Estava tudo lá. Você não vai conseguir comprar as coisas certas, você vai se sentir sozinho, você vai idealizar a cultura de casa etc. Fácil falar; difícil é pagar 10 reais no bilhete errado do metrô e coisas do tipo (no caso do metrô, fui com o bilhete errado mesmo: era o mesmo preço do certo e ninguém veio conferir).

[…]

Às 22 horas, eu senti mais forte ainda o peso da mudança que estou sofrendo. É noite e eu estou sozinho aqui, cheio de problemas pra resolver e incapaz até mesmo de comprar a comida certa. Me permiti chorar, e com intensidade. Não lembro se passei por isso na NZ, mas acho que sim. Fiquei assim mais ou menos uma hora e peguei o [ThePerks [of being a wallflower], que a Ana falou que ia me ajudar. Ela estava certa!

Muita água suja saiu de mim, muito água limpa entrou.

Minha cabeça dói. Vou dormir mais um pouco.

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28/08/2013, quarta-feira, 20:31

Querido Thomaz,

Hoje dei godmorgen a Copenhague com menos ânimo do que ontem. Precisei reunir forças para levantar da cama. Estou me sentindo mais denso aqui na Dinamarca – fisicamente mesmo, não sei dizer isso de outro modo. Ontem, depois da choradeira, eu havia anotado no meu caderno três “missões” que eu tinha para cumprir hoje.

3 – Internet

2 – Bike

1 – R[esidence] P[ermit]

A razão para a numeração invertida é que eu escrevi a lista conforme as coisas vieram à minha mente e só depois numerei de acordo com a real importância (Freud explica).

Como minhas pernas estavam destruídas pelas doze horas de caminhada dos dias anteriores, resolvi ir de metrô até a metade do caminho e só andar o resto. Na minha cabeça, hoje era dia de descansar as pernas. Escrever isso agora me dá até vontade de rir considerando como esse dia terminou.

Quando desci do trem, na estação central de Copenhague, algumas coisas atrasaram minha missão. Primeiro, a estação tinha Wi-Fi aberta. Fiquei mais ou menos uma hora olhando as atualizações e comentários dos amigos e conversando com minha família. Também te mandei uma mensagem. Esse é o começo do que promete ser uma longa trajetória de gambiarras para conseguir fazer as coisas sem pagar caro por aqui. Meu primeiro gol num jogo que antes estava pelo menos dois a zero para a Dinamarca.

A outra coisa que atrasou minha missão foi que precisei ir ao banheiro. Não é o que você está pensando. O que aconteceu foi que eu segui as placas até o banheiro, descobri que era pago (5 kr.), desisti de mijar e babei por uma hora pra eliminar os líquidos. OK, a última parte é brincadeira. Mas se eu estivesse numa situação pior e sem dinheiro, teria que arranjar algum outro jeito. Começo a entender porque alguns cantos da cidade fedem tanto.

Na Agência de Imigração (Agência para Recrutamento e Retenção Laboral é o nome verdadeiro, que não faz sentido), tudo correu aparentemente bem. Perguntei várias vezes se o fato de meus documentos estarem em português era um problema, e o máximo que ganhei foi um “I don’t think so. Our people can manage with this.” Se ele está dizendo…

Saí da agência e passei numa loja de bicicletas. Não vendiam bicicletas usadas, e a mais barata custava 3200 kr. Percebi que teria que voltar à universidade para pedir ajuda quanto às outras duas missões. Em protesto contra as tarifas do trem, fui andando (uma hora e meia com paradas para sentar e observar os prédios, os transeuntes, os canais). No caminho, me permiti almoçar no Burger King (gol da Dinamarca). É o primeiro pedaço de carne que como no país (sem contar o estrogonofe bizarro com que queimei a língua enquanto sobrevoávamos a Jutlândia).

Algumas coisas que percebi nessa caminhada mais tranquila. Dizem por aí que Copenhague é uma cidade pouco poluída. Pode ser, mas isso é muito relativo. O ar é, com certeza, muito menos poluído do que em Campinas, mas tenho minhas dúvidas quanto ao chão. A propaganda é exagerada. E ainda não encontrei explicação para a quantidade de areia nas calçadas da cidade inteira.

Numa coisa, entretanto, as pessoas têm toda razão ao elogiar Copenhague. E acredito seriamente que as outras grandes cidades do mundo deveriam copiá-la nesse aspecto. As bicicletas. […] Ainda vou escrever mais detalhadamente sobre isso numa carta futura. Mas estou convencido de que elas podem salvar o mundo, sim.

Assim como em Auckland, meu lugar favorito na cidade é um parque pouco importante.

Assim como em Auckland, meu lugar favorito na cidade é um parque pouco importante.

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Rådhuspladsen (prefeitura) + dragões

Rådhuspladsen (prefeitura) + dragões

Down is the new up

Down is the new up (a estação central com WiFi grátis)

Voltando à minha missão: eu estava indo para a universidade. A secretária que me atendeu elogiou minha pronúncia do nome do prédio onde moro, Tranehavegård. Ela me apontou um esquema de aluguel de bicicletas por um semestre por preços “student-friendly”. Pelo menos tiveram a honra de não dizer “cheap”. Também me passou quatro empresas de Internet, das quais três exigem que eu tenha um CPF dinamarquês. Comprei um modem e assinei a banda larga pela outra, mas a empresa ainda não me cobrou, por algum motivo. Disseram que o modem chega em cinco dias. A ver.

Parei no café com cujos donos havia conversado na segunda, e um deles ainda se lembrava de mim. Disse que ia colocar meu nome na cadeira em que sempre sento e me deu um Mocha gelado de graça. Também disse que sonha visitar o Brasil durante a Copa e permitiu que eu usasse a Internet lá sempre que precisasse, sem necessidade de comprar nada. O placar até agora está Dinamarca 3 x 2 João.

Voltei para casa andando para não pagar o bilhete do trem novamente (acho que não falei ainda, mas são 24 coroas!). Mas só amanhã saberemos se fiz mais um gol. Minha perna direita está num estado análogo ao da minha mão depois da segunda-feira. Amanhã vou tentar chegar cedo na universidade para pegar o café da manhã gratuito. Se conseguir fazer isso andando, são mais dois gols e viro o jogo.

No total, caminhei cerca de 18 horas nos últimos três dias. No Brasil, não teria feito isso em um mês. Acho que isso é uma coisa boa.

Saudações saudosas,

João G.

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30/08/13, sexta-feira, 22:23

Querido Thomaz,

Os dois últimos dias foram, como previsto, cheios de informação nova que eu mal tenho tempo pra processar. Hoje, porém, foi um dia que, por conta de alguns incidentes, me permitiu parar, pensar e escrever. Então vou tentar te resumir o que foram essa quinta e essa sexta.

[A propósito, eu não consegui ir a pé e cheguei atrasado, mas tomei o café da manhã de graça mesmo assim. Também descobri a cantina da faculdade, onde comi um almoço de primeira por 15,50 coroas. Então acho que o placar está mais ou menos empatado.]

O motivo pelo qual os dois dias foram tão cheios é que neles aconteceram os eventos de apresentação da faculdade. Houve várias palestras que me deram sono, mas que tinham lá seu interesse (sobre o Welfare State dinamarquês, a cultura da bicicleta em Copenhague e coisas assim). Depois vieram algumas visitas guiadas às instalações da faculdade e muitas conversas com outros alunos estrangeiros.

A faculdade é, como se poderia imaginar, um espetáculo a parte. Sobre a qualidade da infraestrutura não vou nem comentar. O padrão é nórdico. Os prédios da Humanistiske Fakultet são bem novos, alguns têm apenas seis meses de idade. São modernos, portanto, e seguem a linha do design dinamarquês reconhecível em outros prédios. Um colega do Canadá, estudante de planejamento urbano, descreveu-os como “progressive and pretty”. As fotos talvez não mostrem tanto todo um ar de utopia futurista que se sente soprar conforme andamos pelo campus.

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Salão principal das humanidades

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À esquerda dos prédios novos, a Campus Tent, onde costumam acontecer as festas

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Depois tem, é claro, os lugarezinhos especiais escondidos no meio desses prédios e praças gigantescos. Há a fantástica livraria de livros acadêmicos, cujo dono cultiva um visual meio viking; as salas de concertos, de estudos, de meditação, de dança, de esgrima, todas sempre cheias de atividades coletivas; os bares de estudantes, em especial um no Instituto de Artes e Estudos Culturais (IKK) chamado (se segura na cadeira) Roland Bar. E as bibliotecas… Ah, as bibliotecas… Você tinha que estar aqui pra ver isso.

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Cadeira de massagem (!) na biblioteca
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Roland Bar

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Livraria da Ed. Unicamp, ou algo assim

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Biblioteca

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Durante os dois dias, conheci várias pessoas de várias nacionalidades. Conversei principalmente com alguns poloneses, uma estudante de literatura de São Petersburgo, dois canadenses, dois australianos, três italianas e três francesas. Acabei ficando mais próximo de um estudante de geografia de Vancouver, A. P., que ficou muito feliz em saber que geografia é humanas no Brasil (é uma ciência na universidade dele) e da citada letrista russa, cujo nome, infelizmente, não lembro. Estamos naquele estado em que a gente já conversou demais pra perguntar os nomes um do outro porque nos esquecemos de fazer isso no começo [descobri pelo Facebook do A. P.: A. B.]. No almoço de hoje, na maravilhosa cantina da faculdade, ouvi umas pessoas falando português: era a família de uma professora carioca, casada com um dinamarquês, que daria uma palestra dali a pouco. Foram os primeiros brasileiros que encontrei aqui.

Hoje houve também a cerimônia oficial de matrícula na universidade. Como você viu, a maioria dos alunos era europeia e provavelmente também vinha de universidades antigas com cerimônias parecidas. Para mim, a coisa toda era muito pitoresca. Estávamos num salão do século XVI, enfeitado com pinturas barrocas em todas as paredes, com os reitores de cada faculdade (um deles era clone do Varys) e o reitor da universidade, enfileirados, em vestimentas cerimoniais, ouvindo um coral e uma orquestra tocarem canções tradicionais, em dinamarquês e em latim, saudando os novos alunos. Depois veio o pronunciamento do reitor, cheio de ironia sobre aquilo tudo (“agora vocês vão todos apertar minha mão para selar um juramento do século XV; segundo o qual, se vocês não aceitarem o poder dos professores sobre vocês, vocês vão para a cadeia”). Para mim, foi difícil manter o blasé diante dessas coisas.

O Varys não está aparecendo muito bem, mas é aquele mais à esquerda.

O Varys não está aparecendo muito bem, mas é aquele mais à esquerda.

Salão principal da faculdade, no campus central.

Salão principal da faculdade, no campus central.

Na saída, encontrei mais alguns alunos brasileiros. A primeira foi uma aluna de enfermagem da Unicamp, a outra pessoa da Unicamp que foi selecionada para o programa que estou fazendo. R., um estudante de filme e mídia de Minas, mas também formado pela Unicamp, ouviu a gente conversando e se juntou a nós. Ele vai estudar dois anos aqui, no mestrado. Mais tarde, B., outra mineira, da UFMG, que já está aqui há algumas semanas, nos encontrou. Acho que ela vai fazer alguns cursos comigo. Trocamos Facebooks e conversamos um pouco; principalmente eu, Rafael e nossa colega da Unicamp.

Essa aluna da Unicamp, N., me ajudou em muitas coisas. Inclusive fomos juntos comprar a minha bicicleta (o mais barato e rápido meio de transporte em Copenhague). Eu tinha avisado meus amigos internacionais que ia fazer isso e depois me juntar a eles na nossa festa de recepção. Aconteceu que começou a chover forte enquanto eu voltava da loja de bicicletas. Eu fiquei ensopado como nunca antes e tive que desistir da festa. Quando cheguei ao apartamento, percebi (como de costume) que estava exausto. Talvez eu já não estivesse disposto para a festa antes. Uma pena, pois gostei mesmo dos meus amigos de Vancouver e de São Petersburgo.

Amanhã vou passear com minha nova bicicleta (parece que voltei uns 10 anos no tempo) e ver alguns dos lugares mais turísticos na cidade. Com toda confusão, não posso dizer que não está sendo uma boa primeira semana em Copenhague.

Abraços,

João G.

(31/08/13, sábado, 16:12) PS.: Eu comprei a pior bicicleta do Reino da Dinamarca.

Em resposta a: Thomaz/João #17

João/Thomaz #16

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Moro aqui

Copenhague, 26 de agosto de 2013.

Querido Thomaz,

Estou datando a carta porque estou mais ou menos sem Internet e não posso publicá-la imediatamente. E incluo o local porque é maneiro. São 20h09 aqui, 5 horas mais tarde que no Brasil, e faz um calor agradável com sombra fresca.

Não quero me demorar muito nisso, mas a falta que você sente pode dar um indício do que eu estou sentindo agora. Fiquei muito feliz por dar um último abraço em você e na Ana antes de partir, há pouco mais de um dia. Não só por ser um paliativo para as saudades, mas porque me lembrei de que vocês vão continuar perto um do outro nesses seis meses.  Assim, nem você nem ela se sentem tão sozinhos quanto poderiam com todas essas partidas. Ainda mais a Ana, que já foi pro Canadá.

E que essas cartas e a Internet nos mantenham provisoriamente próximos nesse tempo. Ia dizer isso na outra carta, mas acabei esquecendo: passarão os céus e a terra, mas não passará o fluxo de links no nosso chat do facebook (amém).

Quanto à minha busca, acredito em você. Vou te dizer uma coisa. Apesar do que escrevi na minha última carta, meu primeiro dia aqui foi bem diferente do meu primeiro dia na NZ. Eu cheguei a Copenhague depois de dois voos longos, ansiosos e mal-dormidos. Passei na imigração e em cinco segundos estava no saguão do aeroporto. Só entendi o que estava acontecendo quando vi um bando de jovens gritando Velkommen e balançando bandeiras dinamarquesas na chegada dos voos internacionais (não pra mim, obviamente). Não vi quando carimbaram meu visto provisório no passaporte, mas ele está lá.

Nesse momento, teria sido bastante razoável eu dar um tempo para respirar aliviado e descansar um pouco (já eram mais de 20 horas desde Campinas) mas, graças aos deuses nórdicos, não o fiz. Segui com o curso planejado: acabou a viagem de avião, começou a corrida para pegar a chave do apartamento antes do fim do expediente (senão teria que arranjar acomodação para o pernoite e pegar a chave no dia seguinte). Eu tinha duas horas. Cheguei na secretaria de atendimento ao aluno com dois minutos de folga. A maior parte da enrolação deveu-se à soma do meu previsto calvário carregando a mala de 28 quilos com as informações contraditórias do meu mapa e das pessoas na rua.

A essa altura, eu já me chateava bastante com Copenhague, e comigo mesmo através da cidade. Não se engane, as ruas pelas quais eu estava andando são magníficas, mas a companhia desagradável da mala estragava tudo. Chegar em Auckland, em comparação, foi tão simples quanto ler uma plaquinha com meu nome no saguão do aeroporto, ir até a van que ela indicava (com outra brasileira) e chegar na casa de um amigável veterano do rugby que acordou de madrugada para tomar chá e conversar comigo numa língua que eu falo.

No atendimento ao aluno, eu peguei uma senha e depositei o fardo ao meu lado (uns minutos depois, percebi que podia ter deixado na rua mesmo; quem conseguisse carregar aquilo embora merecia levar meus pertences como prêmio). A secretária, simpática, (reconheci-a de uma foto na página internacional da universidade), perguntou: Is there any international student out there? Eu levantei a mão. Please take a breath, you just made it, ela respondeu ao ver minha situação. Se eu precisasse subir mais um degrau com a mala, começava a chorar ali mesmo.

Saí de lá com a chave e o RA e, pra acabar com a tortura, chamei um táxi. Pelo preço, o próximo vai ser daqui a seis meses. Eu não sabia se o taxista era italiano ou turco. Só tive certeza quando ele não conseguiu achar o meu apartamento e começou a praguejar balançando as mãos.

Desisti de esperar o taxista achar meu prédio e desci, invocando Thor e Odin para conseguir arrastar o trambolho mais algumas ruas. Reli o endereço um pouquinho, segui mais algumas explicações erradas de dinamarqueses (eles têm um sério problema com lateralidade) e cheguei nessa porta. Imagem

Esse aparente espirro em cima do meu nome é, na verdade, o meu colega de apartamento. Ele ainda não apareceu, mas já sei algumas coisas sobre ele. Ele deve estar aqui há mais tempo, pois deixou alguns livros-textos na sala (que é o meu quarto). Também deve ser muito organizado, pois afora os livros e um cobertor da British Airways (acredite se quiser, ele também roubou um), meu quarto está limpo. O banheiro também. Tem comida no armário da cozinha e a louça está toda lavada. A casa está bem abastecida de produtos de limpeza e higiene. Não toquei na porta do seu quarto. Estou esperando que ele chegue logo e me ajude um pouco com as coisas. Caso isso não aconteça, já passei meu endereço para a outra aluna da Unicamp que está aqui há dois dias, e pedi que ela me encontrasse assim que possível.

O apartamento não tem Internet e meu celular ainda não funcionava quando cheguei, o que me levou, logo que entrei no apartamento, a um breve momento de desespero intercambístico (o que estou fazendo aqui tenho que voltar imediatamente cadê minha mãe cadê meu pai eu vou morrer); mas então eu lembrei que tinha acabado de vir da universidade na região Norte da cidade, cheia de cafés e de Wi-Fi. Meu celular voltou a funcionar no caminho pra lá e falei com minha família pela primeira vez desde Guarulhos. Fiz amizade com os donos de um café pequeno e bem localizado. Uma pena que (pra variar) é bem caro. Eu só precisava mesmo dos 20 minutos de Internet. Copenhague está começando a ficar interessante de novo.

(Com um sobressalto, ouço tosse e o ranger de móveis no quarto fechado).

21h20, escurecendo enfim. Nos falamos depois.

Abraços,

João G.

PS.: agora que vou conseguir enviar a carta, são 11:20 do dia seguinte. O barulho no quarto foi um alarme falso: tinha esquecido de que ouvimos todos os vizinhos  e o elevador ao mesmo tempo num apartamento. Fiquei esperando meu asiático colega aparecer e percebi que estava exausto. Acordei hoje, sozinho ainda, e estou passeando pela cidade. Assim que puder, mando mais notícias.

Em resposta a: Thomaz/João #15

João/Thomaz #14

Querido Thomaz,

São 22:59, umas dezessete horas antes do meu voo. A maioria das coisas que vêm à minha mente são questões práticas, do tipo: como vou fazer para andar pela cidade arrastando aquela mala colossal e uma mochila considerável nas costas? Obviamente, preocupações tolas: e o meu eu-típico acalma o eu-fórico.

Hoje em dia eu já não costumo ter muita noção do que está acontecendo ao meu redor. Mas quando eu viajei para a Nova Zelândia, sozinho, com apenas dezesseis anos, eu era menos consciente e perceptivo ainda. Eu não tinha ideia dos riscos que estava correndo. Sem essa atitude, minha primeira aventura não teria sido metade do que foi. Estou lutando, com relativo sucesso, para encarnar esse João de dezesseis anos agora.

As pessoas fazem muitas perguntas e as respostas costumam ser as mesmas, over and over again. Estou encarando isso de maneira muito positiva, pois a repetição garante que eu tenho certeza do que estou falando, e me ajuda a repassar as toneladas de informação na minha memória. E ainda há muita lição de casa a fazer.

Uma das questões cruciais é: Por que a Dinamarca? Você sabe que eu sempre quero conhecer esses países de que se pergunta: Que língua eles falam? Qual é a moeda? É muito frio lá? O que tem lá? Talvez a resposta mais correta à pergunta-mãe seja: é o que tem pra hoje. Mas não é isso que eu digo, é claro. Eu respondo o seguinte.

Primeiro, eu aprecio a distância a cultura do país. Você percebe, mas eles não, que essa resposta se aplica também ao Irã, à Nova Zelândia, ao México, a Roma e a Bizâncio, entre muitos outros. Mas não deixa de ser verdade.

Segundo, é uma oportunidade de aprender coisas novas. É uma resposta propositalmente ambígua, pois posso estar me referindo à viagem por si só ou à universidade. Devo ser um dos poucos que está tão empolgado com um quanto com o outro.

Terceiro, porque é um país que tem muito de novo a oferecer que posso trazer de volta. Sobre isso, acho que tenho pouco a comentar. Mas eu sinto que a mesma experiência nos EUA ou na França, por exemplo, (menos ainda nos EUA do que na França) não teria o mesmo impacto de tradução.

Uma coisa ninguém me perguntou ainda, mas é bastante importante. O que eu estou procurando? Pouco falei sobre esse assunto com você, mas ultimamente tenho me pego com frequência num preocupante desespero espiritual decorrente da minha alienação em relação à natureza e à arte. Sem grandes elaborações, simples assim. Talvez, se você assistir à TED Talk do Sebastião Salgado, e lembrar que ando escrevendo e pensando sobre Miyazaki (de novo), você me compreenda melhor. Acredito que os jardins e parques da Dinamarca podem me dar um novo fôlego em relação a isso (você também percebe que, de novo, os jardins e parques da Inglaterra, do Camboja ou do Brasil também poderiam satisfazer essa necessidade, então voltamos à resposta inicial, à resposta sincera a todas as perguntas).

Sentirei sua falta.

Abraços,

João G.

Em resposta a: Thomaz/João #13