Copenhague, 01/10/2013
Querido Stefano,
Sua última carta chegou carregada não só da melancolia regular do exílio, mas também de uma certa urgência, um clamor por socorro. Por isso, achei adequado te mandar alguns recados por outros meios antes de responder por aqui (porque estas respostas requerem uma certa elaboração e um certo tempo). Fizemos bem em nos comunicar dessa forma, porque eu também estou cheio das mesmas perguntas. Conversando assim, acabamos por descobrir algumas coisas juntos, que vou tentar recapitular e desenvolver um pouco aqui.
A verdade é que eu gostaria muito de te dar as respostas certas a esses dilemas. Mas eu não as tenho para mim mesmo. O que posso te oferecer são algumas perguntas. Nós sabemos o que as perguntas fazem conosco. Posso me ver, e te ver, passando a odiá-las, a desejar que elas não existissem. Mas elas estão aí e nós não podemos fazer muita coisa se la vie est absurde.
O que segue é a minha tentativa de ordená-las aqui numa sequência compreensível.
– A nossa entrada na faculdade do Brasil poderia também ser vista como um momento de abandono, de falência social. O que fez com que ela fosse o contrário disso? O que os amigos daqui têm de diferente (pior?) do que aqueles que nos eram desconhecidos quase quatro anos atrás?
– O que, de tudo aquilo que me impede de me sentir em casa aqui, é contornável?
– A (nossa) espiritualidade brota de algum lugar em específico ou ela simplesmente existe, independentemente da nossa vontade, reconhecimento ou consciência?
– Quando eu me (des)encanto com alguma coisa, quem ou o que despertou esse (des)encanto?
– (Essa partiu de você) será que algum dia resolveremos essas coisas?
Talvez eu tenha uma facilidade para lidar com a desesperadora inquietação que essas questões nos provocam porque eu sempre fui um ser falido socialmente. Durante os primeiros vinte anos da minha vida, eu não quis fazer nada a respeito da angústia de tentar conciliar meu bom senso e minhas incertezas imateriais com um ambiente evangélico bastante peculiar e crescentemente fundamentalista. Quando a conciliação me pareceu impossível e indigna, eu resolvi abandonar a minha igreja. Passados alguns meses, eu e meus amigos de infância percebemos, silenciosamente, que vai ser quase impossível evitar nossa alienação e estranhamento mútuos.
Minha despedida poderia ser a minha carta de condenação à solitária.
Queria te contar um pouco sobre uma das figuras que hoje mais me inspiram. Meu pai cresceu num ambiente incomparavelmente mais opressivo que o meu: e ainda pior, com escassos recursos materiais. Mas ele tinha um sonho e uma boa professora de primário. Contra o sistema de educação, contra muito bullying e contra as dificuldades e a competição que alguém que vem de uma família pobre do interior sempre tem que enfrentar, meu pai conseguiu ser forte e ir bastante longe na carreira com que sonhava.
E então, por causa de um problema no coração, ele teve que desistir de tudo.
Eu nunca entendi, mas sempre admirei, o fato de meu pai ter passado pelo menos os cinco anos seguintes sem algo estável em que se agarrar. E ainda assim ter conseguido recolher os cacos, recomeçar e dar uma existência digna a mim e aos meus irmãos.
Isso é um pouco da história do meu pai. Não posso esquecer da minha mãe, que nasceu numa família muito grande, e também com poucos recursos, e perdeu o pai com cinco anos. Às vezes, junto com as muitas irmãs, ela lembra do tempo em que tinham que pular refeições para conseguir levar algum dinheiro para casa.
Esta é uma carta bastante íntima e estou com medo de não fazer justiça às histórias e às pessoas sobre as quais estou falando. Eu morei mais de vinte anos com o meu pai e e com a minha mãe me acostumei com a presença deles sob o mesmo teto. Foi só quando vim pra cá e fiquei diante da minha própria sub-vida, da minha incapacidade de viver, que fui reler mentalmente as histórias que escrevi acima. Sob uma certa luz, podem parecer histórias tediosas. Mas a verdade é que eu sempre vivi na mesma casa que as duas pessoas mais incríveis do mundo.
Ou melhor, quatro.
Eu vi meu irmãozinho crescer diante dos meus olhos. Quando as coisas acontecem assim, temos um curso extensivo de como enxergar a preciosidade daquela vida e daquela pessoa. Nós nunca perdemos a oportunidade de dizer um ao outro que nos amamos; mas nem precisaríamos, porque já está no olhar. Eu sempre achei que minha relação com minha irmã mais velha era diferente, mais complicada, mais cheia de atritos e de pontos cegos.
Foi na tarde em que visitei os sítios arqueológicos que percebi que não era bem assim. Na volta a Copenhague, de súbito e aparentemente sem motivo algum, encontrei-me chorando de saudade da minha irmã. Só da minha irmã. E não só do tempo em que brincávamos nas nossas casinhas pequenas em Itu e Mogi-Guaçu, infinitas e belas como palácios reais, mas também de quando tínhamos que dividir o carro um mês atrás e de tudo que aconteceu no meio. Foi forte, verdadeiro e inesperado, e eu tive que esconder o rosto porque não conseguiria explicar o que estava acontecendo a quem perguntasse.
Tudo isso poderia transformar meus dias em melancolia e saudade, mas não tem sido assim. Copenhague sempre vai ter um lugar especial no meu coração, pois foi o lugar em que eu percebi que as minhas ideias anteriores sobre onde o valor do mundo reside sempre tinham sido estimativas pessimistas. Aqui, sozinho na companhia da minha própria mediocridade, vi que por toda a minha vida talvez não tenha sido metade do ser humano que cada um dos meus familiares é; mas que esse cenário não vai melhorar se eu não ajudar a mim mesmo.
Agora que já fui tão longe, não sei por que não dizer tudo. Eu acho que essa é a maior conquista que alcancei no último mês, quiçá em toda a viagem: aprender a enxergar a vida e a história nos olhos de cada um. Eu ainda estou esperando a resposta da minha permissão de residência, e passo os dias assombrado pela possibilidade um carimbo de rejeição na caixa de correio. Mas nem mesmo esse acontecimento eu poderia chamar de fracasso. Porque agora, diferentemente do joão de julho, este que vos fala não acredita mais em usar os reveses para justificar apatia e desânimo, mas sim em juntar os cacos e seguir adiante.
É irônico que a primeira carta meio auto-ajuda do blog parta de mim, o dono da vida mais patética dentre nós três. Eu poderia tentar fazer uma versão oposta da sua lista de contrastes: aqui eu saio no fim de semana, aqui eu olho nos olhos das pessoas quando converso com elas, e ouço de verdade suas histórias, mas acho que a lista pararia aí. Porque se você vier me visitar, acho que você vai ter a impressão de que encontrou o mesmo João Guilherme de antes, só um pouco mais resistente ao frio.
Eu também, como sempre, não sei fazer piada, me sinto meio estranho no meio do grupo e falo coisas óbvias e sem graça. Mas eu tive paciência, alguns outros tiveram paciência, e eu acabei fazendo amigos. E no final das contas, existia sim algo que valia a pena em mim, nas pessoas e na cidade. Eu não tenho nada a ensinar a alguém como você. Só acho, e aposto às cegas, que ainda tem muita coisa passando na frente dos seus olhos em Paris que você não está se permitindo, ou arriscando, enxergar. Talvez o problema não seja ir de um lugar pro outro ou fazer ou dizer a coisa certa mas sim acertar o foco.
Sinceramente como quase nunca antes,
João G.
P.S.: Gostei muito do cartão postal, você bem sabe. Já pensou bem no que me disse?
Em resposta a: Stefano/João #9