Thomaz/João #25

Querido João,

Finalmente dei início ao meu projeto de longa data de ler a Bíblia do início ao fim. Tenho-o executado sem pressa, em paralelo a outras leituras “seculares”. Estou utilizando a Bíblia do Peregrino, uma fantástica edição de estudo belamente traduzida e anotada, e após cada livro  leio o capítulo sobre ele no Guia Literário da Bíblia, organizado por Robert Alter e Frank Kermode. Terminei o Gênesis no domingo – como disse, estou sem pressa.

Como já havia dito na última carta, também estava lendo a Ilíada, em uma tradução também muito boa, e também acabo de concluir a leitura. Não pude deixar de notar diversos paralelos entre as duas obras. É clássico o ensaio de Erich Auerbach comparando a narrativa do Antigo Testamento a Homero (“A Cicatriz de Ulisses”, o primeiro capítulo de Mimesis, as you may remeber), ensaio que não li e ao qual não pretendo me equiparar. No entanto, gostaria de tecer alguns comentários.

A primeira coisa que salta à vista são alguns paralelismos formais – pontuais, talvez, mas muito interessantes. O primeiro e mais óbvio deles são as repetições de fórmulas, situações e cenas, marca provável de uma herança oral em dois textos que, como seu aparato de notas e comentários, o qual não sou capaz de reproduzir aqui, provou muito bem, dependem no entanto fortemente da escrita. O segundo, muito interessante, e também de raiz oral, é a construção circular de cenas, que a “Introdução ao Antigo Testamento” (de Robert Alter) do Guia Literário chama de “repetição de reatamento”, e a “Introdução” (de Peter Jones) da Ilíada de “composição anular”, isto é, uma proposição inicial de ação interrompida parenteticamente e retomada para dar prosseguimento à narrativa. Tomo os exemplos das introduções (grifos meus). Na Ilíada:

Não passou despercebido ao filho de Atreu, Menelau dileto de Ares,/ que pelos Troianos fora Pátroclo subjugado na refrega./ Atravessou as filas dianteiras armado de bronze cintilante/ e pôs-se plantão por cima dele, como uma vaca que deu à luz/ pela primeira vez, junto a sua vitela com lamentosos mugidos:/ assim em volta de Pátroclo se colocou o loiro Menelau. (XVII.1-6)

E na Bíblia (peço perdão por não ser um exemplo do Gênesis, mas não tenho como procurá-los agora):

Então todas as tribos de Israel vieram ter com Davi em Hebrom e disseram: “Vê! Nós tomos dos teus ossos e da tua carne. Já antes, quando Saul reinava sobre nós, eras tu o líder de Israel na batalha. E o Senhor te disse: ‘És tu que apascentarás o meu povo Israel e és tu que serás chefe de Israel'”. Todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei, em Hebrom, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebrom, na presença de Iahweh, e eles ungiram Davi rei em Israel. (II Samuel 5, 1-3)

Esse recurso permite incluir informações, desenvolver imagens e até mesmo reelaborar ou refocar a ação, como no caso de II Samuel, em que há uma evolução entre tribos de Israel/Davi e anciãos de Israel/rei.

Embora a poesia grega caminhe no sentido da elaboração e a hebraica no sentido da concisão, ainda assim é possível apontar ainda um outro paralelo formal no aspecto “objetivo” (feitas todas as ressalvas a esse termo) de ambos os textos. Com frequência na Ilíada, e quase sempre no Gênesis, o narrador não emite juízos sobre seus personagens. É com um estilo direto que se narra a ação, e o que na Ilíada pode muitas vez ser confundido com um juízo aparece somente em falas de personagens ou em epítetos e símiles que mais parecem a intromissão da voz de um personagem junto à voz do narrador.

Gostaria ainda de apontar uma última coincidência, que me permita avançar para o espectro temático-ideológico dos dois textos. Tanto a Ilíada quanto o Gênesis são obcecados por genealogias! As listas de antepassados e de gerações abundam. No épico grego, a genealogia invocada por cada personagem pretende reafirmar a nobreza dele, e explicar as relações entre os diferentes “atores” das situações. No caso do texto bíblico, as listas de gerações parecem, como é sugerido por J.P. Fokkelman, que escreve o ensaio sobre o Gênesis no Guia Literário, manter em movimento e levar adiante a ordem de Deus para que seu povo seja fecundo, multiplique-se e oculpe a terra. Trata-se de uma elaboração formal desse princípio de fecundidade, herança, descendência e, enfim, fraternidade.

Com efeito, a fraternidade – isto é, as relações entre os homens, que fundam as sociedades, as culturas, as civilizações – é o assunto principal do Gênesis – sob a luz da ação Divina -, ao menos no ciclo patriarcal que se segue ao Dilúvio. E também o é na Ilíada, embora sob uma lente muito mais focada, que observa de perto uns poucos personagens – Aquiles, Agamêmnon, Pátroclo, Heitor – e as dinâmicas entre eles.

No início do canto VI da Ilíada, Diomedes, filhou de Tideu, que naquele momento é o mais valoroso dos guerreiros gregos em batalha (pois Aquiles se retirou irado) depara-se com Glauco, aliado troiano da Lícia, e lhe pergunta: “Quem és tu, valentão, dentre os homens mortais?” O que ele deseja é saber se o oponente é um homem, e não um deus, contra quem não poderia lutar. A resposta de Glauco é clássica:

Tidida magnânimo, por que queres saber da minha linhagem?/ Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens./ Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço/ faz nascer outras, quando sobrevem a estação da primavera:/ assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir. (VI.145-149)

Ainda assim, ele prossegue com a narração das aventuras de seus antepassados mais imediatos, e com isso ele e Diomedes descobrem-se parentes, desistem de lutar e trocam presentes – para depois irem matar algum outro soldado que lhes seja menos aparentado.  É uma cena única no poema, e muito curiosa. Um momento em que a linhagem tem um efeito pacificador nos homens, tão afeitos aos laços de sangue.

No entato, a violência segue. A Ilíada, primeira obra da literatura ocidental, é também a primeira história de vingança. Muito menos do que a glória, objetivo típico dos nobres gregos, o que motiva as ações de Aquiles no clímax do épico é o ódio provocado nele pela morte de Pátroclo. Com um ira verdadeiramente terrível, ele massacra os soldados troianos a torto e a direito, e consegue enfim matar Heitor. Mas não é suficiente. Destroçado, ainda, pela morte de seu melhor amigo, ele arrasta o corpo de Heitor ao redor do túmulo de Pátroclo, planeja entregá-lo aos cães e, no funeral do companheiro, sacrifica doze jovens troianos.

As cenas que antecedem o funeral são de uma pungência extraordinária. No início do Canto XXIII, o fantasma de Pátroclo visita Aquiles para pedir que ele o sepulte logo, pois de outro modo não poderá atravessa o rio que leva ao mundo dos mortos. Enquanto lia essa cena, no silêncio de uma sala do Fisk, em uma terça à noite, fui tomado por uma melancolia enorme. A Ilíada é também a primeira tragédia – a tragédia de um homem que desejava a glória, mas quando perde aquele que mais amava, por sua própria teimosia, é machucado para além de qualquer remédio. Estive pensando esses dias na ferida que o Rei dos Bruxos de Angmar produz em Frodo, e no efeito duradouro, insuperável, dela. O hobbit precisa ir para o Oeste por causa dela, pois algumas feridas simplesmente não saram, simplesmente não podem ser esquecidas.

No Gênesis, por outro lado (já no Gênesis!), um dos motivos principais é o perdão. Esaú perdoa Jacó, José perdoa seus irmãos, e assim se conclui a primeira parte de uma história que sem dúvida ainda apresentará muita violência e sofrimento – mas, para aqueles personagens, foi possível ir além das mágoas, ir além do ato de agressão contra o Outro que caracteriza o homem desde que Adão se evade da responsabilidade por seus atos acusando Eva, e perdoar, reconstruir a fraternidade.  Algo semelhante acontece, por fim, no Canto XXIV da Ilíada, quando Príamo visita na calada da noite a cabana de Aquiles para pedir de volta o corpo do filho. Príamo enxerga em Aquiles alguém como o filho, e Aquiles enxerga em Príamo alguém como o pai. A partir desse ato de empatia, de enxergar a si próprio no outro, é possível parar a violência, retomar, nem que seja por um instante, a paz.

Visitando esses textos fundadores, sinto que tenho acesso a algo de essencial. Se eles estão no marco inicial de nossa civilização e cultura, talvez seja bom voltar a eles, nesse momento em que nossa civilização e cultura se aproximam do fim, e buscar alguma espécie de âmago que possa nos ensinar a produzir, a partir das ruínas, o novo.

Um abraço,

Thomaz

Em resposta a: João/Thomaz #24

 

Thomaz/João #23

Caro João,

Fico muito feliz de ler essas suas cartas. Você tem conseguido transformar suas experiências pessoais em experiências de leitura. Acredito que mesmo quem não te conheça, ao ler seus relatos, se sentiria afetado pela força deles. Nessa última carta, de modo especial, fiquei impressionado com a analogia entre o Louisiana MoMA e o festival de Jazz. Momentos de assombro para você se tornam momentos de assombro para o leitor.

Não posso deixar de fazer uma relação com os símiles de Homero (sim) na Ilíada, que estou lendo esses dias na tradução de Frederico Lourenço, um português. A tradução é muito especial porque mantém o caráter oral, performático, repetitivo e caudaloso da poesia homérica. É possível enxergar o texto grego (ao menos para quem tem alguma familiaridade com a língua) através da tradução. Creio que este é o maior mérito de uma tradução. De certo modo, é isso também que você tem feito em suas cartas: traduzido. É possível enxergar suas experiências através do relato.

Mas começava a falar dos símiles: segundo a introdução, há mais de trezentos deles ao longo da obra (e, acredite se quiser, 666 falas de personagens). Alguns são verdadeiramente impressionantes.

Mas o terror não se apoderou de Idomeneu como de um rapaz

mimado, mas estacou como um javali das montanhas, confiante

na sua força, que aguenta a chusma de homens que contra ele

avança em local ermo; o dorso se lhe eriça em cima

e como fogo lhe brilham os olhos; e afia as presas

ansioso por dali repulsar homens e cães –

assim permaneceu firme Idomeneu, famoso pela sua lança,

sem arredar pé, à investida de Eneias.

(XIII. 470 – 7)

A descrição que você fez das paragens nórdicas coincidiu com um post da Carol Bensimon no Blog da Companhia das Letras sobre a América profunda. Acredito que existem muitas semelhanças entre esses dois ambientes. Não só na paisagem, mas sobretudo no status mítico adquirido através da arte. E ainda mais – embaralho-me para conseguir expressá-lo – no caráter de lugar desses lugares. No peso que eles têm enquanto paisagem, enquanto lugares de fato. A própria Carol cita Rebecca Solnit a esse respeito:

Perhaps it’s that you can’t go back in time, but you can return to the scenes of a love, of a crime, of happiness, and of a fatal decision; the places are what remain, are what you can possess, are what is immortal. They become the tangible landscape of memory, the places that made you, and in some way you too become them. They are what you can possess and what in the end possesses you.

[Talvez você não possa voltar no tempo, mas possa retornar aos cenários de um amor, de um crime, de felicidade, de uma decisão fatal; os lugares são o que permanece, são o que você pode possuir, o que há de imortal. Eles se tornam a paisagem tangível da memórias, os lugares que te fizeram, e de alguma maneira você se transforma neles. Eles são o que você pode possuir e o que, no fim, possui você.]

Proust tange o mesmo tema, embora seu balanço de forças possa ser diferente.

Les lieux que nous avons connus n’appartiennent pas qu’au monde de l’espace où nous les situons pour plus de facilité. Ils n’étaient qu’une mince tranche au milieu d’impressions contiguës qui formaient notre vie d’alors; le souvenir d’une certaine image n’est que le regret d’un certain instant; et les maisons, les routes, les avenues, sont fugitives, hélas, comme les années.

[Os lugares que conhecemos não pertencem sequer ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não passam de uma fina fatia no meio de impressões contíguas que formavam nossa vida de então; a lembrança de uma certa imagem não é senão o lamento por um certo instante; e as casas, as ruas, as avenidas, são fugitivas, infelizmente, como os anos.]

O espaço e seus sinais tem me fascinado.

Para terminar, uma música que você deve estar ouvindo já por aí, mas ainda assim se conjuga à perfeição com esta carta.


Um abraço,

Thomaz

øøøøøøøøøø

Em resposta a : João/Thomaz #22