Querido João,
Finalmente dei início ao meu projeto de longa data de ler a Bíblia do início ao fim. Tenho-o executado sem pressa, em paralelo a outras leituras “seculares”. Estou utilizando a Bíblia do Peregrino, uma fantástica edição de estudo belamente traduzida e anotada, e após cada livro leio o capítulo sobre ele no Guia Literário da Bíblia, organizado por Robert Alter e Frank Kermode. Terminei o Gênesis no domingo – como disse, estou sem pressa.
Como já havia dito na última carta, também estava lendo a Ilíada, em uma tradução também muito boa, e também acabo de concluir a leitura. Não pude deixar de notar diversos paralelos entre as duas obras. É clássico o ensaio de Erich Auerbach comparando a narrativa do Antigo Testamento a Homero (“A Cicatriz de Ulisses”, o primeiro capítulo de Mimesis, as you may remeber), ensaio que não li e ao qual não pretendo me equiparar. No entanto, gostaria de tecer alguns comentários.
A primeira coisa que salta à vista são alguns paralelismos formais – pontuais, talvez, mas muito interessantes. O primeiro e mais óbvio deles são as repetições de fórmulas, situações e cenas, marca provável de uma herança oral em dois textos que, como seu aparato de notas e comentários, o qual não sou capaz de reproduzir aqui, provou muito bem, dependem no entanto fortemente da escrita. O segundo, muito interessante, e também de raiz oral, é a construção circular de cenas, que a “Introdução ao Antigo Testamento” (de Robert Alter) do Guia Literário chama de “repetição de reatamento”, e a “Introdução” (de Peter Jones) da Ilíada de “composição anular”, isto é, uma proposição inicial de ação interrompida parenteticamente e retomada para dar prosseguimento à narrativa. Tomo os exemplos das introduções (grifos meus). Na Ilíada:
Não passou despercebido ao filho de Atreu, Menelau dileto de Ares,/ que pelos Troianos fora Pátroclo subjugado na refrega./ Atravessou as filas dianteiras armado de bronze cintilante/ e pôs-se plantão por cima dele, como uma vaca que deu à luz/ pela primeira vez, junto a sua vitela com lamentosos mugidos:/ assim em volta de Pátroclo se colocou o loiro Menelau. (XVII.1-6)
E na Bíblia (peço perdão por não ser um exemplo do Gênesis, mas não tenho como procurá-los agora):
Então todas as tribos de Israel vieram ter com Davi em Hebrom e disseram: “Vê! Nós tomos dos teus ossos e da tua carne. Já antes, quando Saul reinava sobre nós, eras tu o líder de Israel na batalha. E o Senhor te disse: ‘És tu que apascentarás o meu povo Israel e és tu que serás chefe de Israel'”. Todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei, em Hebrom, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebrom, na presença de Iahweh, e eles ungiram Davi rei em Israel. (II Samuel 5, 1-3)
Esse recurso permite incluir informações, desenvolver imagens e até mesmo reelaborar ou refocar a ação, como no caso de II Samuel, em que há uma evolução entre tribos de Israel/Davi e anciãos de Israel/rei.
Embora a poesia grega caminhe no sentido da elaboração e a hebraica no sentido da concisão, ainda assim é possível apontar ainda um outro paralelo formal no aspecto “objetivo” (feitas todas as ressalvas a esse termo) de ambos os textos. Com frequência na Ilíada, e quase sempre no Gênesis, o narrador não emite juízos sobre seus personagens. É com um estilo direto que se narra a ação, e o que na Ilíada pode muitas vez ser confundido com um juízo aparece somente em falas de personagens ou em epítetos e símiles que mais parecem a intromissão da voz de um personagem junto à voz do narrador.
Gostaria ainda de apontar uma última coincidência, que me permita avançar para o espectro temático-ideológico dos dois textos. Tanto a Ilíada quanto o Gênesis são obcecados por genealogias! As listas de antepassados e de gerações abundam. No épico grego, a genealogia invocada por cada personagem pretende reafirmar a nobreza dele, e explicar as relações entre os diferentes “atores” das situações. No caso do texto bíblico, as listas de gerações parecem, como é sugerido por J.P. Fokkelman, que escreve o ensaio sobre o Gênesis no Guia Literário, manter em movimento e levar adiante a ordem de Deus para que seu povo seja fecundo, multiplique-se e oculpe a terra. Trata-se de uma elaboração formal desse princípio de fecundidade, herança, descendência e, enfim, fraternidade.
Com efeito, a fraternidade – isto é, as relações entre os homens, que fundam as sociedades, as culturas, as civilizações – é o assunto principal do Gênesis – sob a luz da ação Divina -, ao menos no ciclo patriarcal que se segue ao Dilúvio. E também o é na Ilíada, embora sob uma lente muito mais focada, que observa de perto uns poucos personagens – Aquiles, Agamêmnon, Pátroclo, Heitor – e as dinâmicas entre eles.
No início do canto VI da Ilíada, Diomedes, filhou de Tideu, que naquele momento é o mais valoroso dos guerreiros gregos em batalha (pois Aquiles se retirou irado) depara-se com Glauco, aliado troiano da Lícia, e lhe pergunta: “Quem és tu, valentão, dentre os homens mortais?” O que ele deseja é saber se o oponente é um homem, e não um deus, contra quem não poderia lutar. A resposta de Glauco é clássica:
Tidida magnânimo, por que queres saber da minha linhagem?/ Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens./ Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço/ faz nascer outras, quando sobrevem a estação da primavera:/ assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir. (VI.145-149)
Ainda assim, ele prossegue com a narração das aventuras de seus antepassados mais imediatos, e com isso ele e Diomedes descobrem-se parentes, desistem de lutar e trocam presentes – para depois irem matar algum outro soldado que lhes seja menos aparentado. É uma cena única no poema, e muito curiosa. Um momento em que a linhagem tem um efeito pacificador nos homens, tão afeitos aos laços de sangue.
No entato, a violência segue. A Ilíada, primeira obra da literatura ocidental, é também a primeira história de vingança. Muito menos do que a glória, objetivo típico dos nobres gregos, o que motiva as ações de Aquiles no clímax do épico é o ódio provocado nele pela morte de Pátroclo. Com um ira verdadeiramente terrível, ele massacra os soldados troianos a torto e a direito, e consegue enfim matar Heitor. Mas não é suficiente. Destroçado, ainda, pela morte de seu melhor amigo, ele arrasta o corpo de Heitor ao redor do túmulo de Pátroclo, planeja entregá-lo aos cães e, no funeral do companheiro, sacrifica doze jovens troianos.
As cenas que antecedem o funeral são de uma pungência extraordinária. No início do Canto XXIII, o fantasma de Pátroclo visita Aquiles para pedir que ele o sepulte logo, pois de outro modo não poderá atravessa o rio que leva ao mundo dos mortos. Enquanto lia essa cena, no silêncio de uma sala do Fisk, em uma terça à noite, fui tomado por uma melancolia enorme. A Ilíada é também a primeira tragédia – a tragédia de um homem que desejava a glória, mas quando perde aquele que mais amava, por sua própria teimosia, é machucado para além de qualquer remédio. Estive pensando esses dias na ferida que o Rei dos Bruxos de Angmar produz em Frodo, e no efeito duradouro, insuperável, dela. O hobbit precisa ir para o Oeste por causa dela, pois algumas feridas simplesmente não saram, simplesmente não podem ser esquecidas.
No Gênesis, por outro lado (já no Gênesis!), um dos motivos principais é o perdão. Esaú perdoa Jacó, José perdoa seus irmãos, e assim se conclui a primeira parte de uma história que sem dúvida ainda apresentará muita violência e sofrimento – mas, para aqueles personagens, foi possível ir além das mágoas, ir além do ato de agressão contra o Outro que caracteriza o homem desde que Adão se evade da responsabilidade por seus atos acusando Eva, e perdoar, reconstruir a fraternidade. Algo semelhante acontece, por fim, no Canto XXIV da Ilíada, quando Príamo visita na calada da noite a cabana de Aquiles para pedir de volta o corpo do filho. Príamo enxerga em Aquiles alguém como o filho, e Aquiles enxerga em Príamo alguém como o pai. A partir desse ato de empatia, de enxergar a si próprio no outro, é possível parar a violência, retomar, nem que seja por um instante, a paz.
Visitando esses textos fundadores, sinto que tenho acesso a algo de essencial. Se eles estão no marco inicial de nossa civilização e cultura, talvez seja bom voltar a eles, nesse momento em que nossa civilização e cultura se aproximam do fim, e buscar alguma espécie de âmago que possa nos ensinar a produzir, a partir das ruínas, o novo.
Um abraço,
Thomaz
Em resposta a: João/Thomaz #24